Memórias são como uma teia. Quando você puxa o fio de uma lembrança, surgem outras e mais outras, sem lógica alguma, sem cronologia. Ocorre uma sinapse e pronto, coisas das quais você não se recordava surgem em technicolor, com todos os detalhes, locais, nomes. Mas são personalíssimas, e em muitas ocasiões pessoas que estiveram conosco no mesmo episódio tem lembranças diferentes. Fiz um curso de Teoria Geral da Organização Humana do Professor Dr. Antonio Rubbo Muller da USP, que ensina a elaboração do quadro mental e de quantas variáveis existem de pessoa para pessoa na formação de nossas memórias. Então muitos dos leitores destas crônicas terão uma visão diferente dos fatos que relato e eu ficaria muito grato se pudessem me ajudar a completar as lacunas ou a corrigir, como estão fazendo, alguns enganos.
O jornalismo na minha época era muito informal. Embora a qualidade dos jornalistas fosse excelente, as redações eram abertas, qualquer pessoa podia entrar, sentar-se à mesa, conversar, trazer fatos ou contar fofocas. Eram muitas fofocas. Quando passei a dedicar meu tempo à Folha, o Rui, que era artista plástico além de excelente redator, fez uma credencial de jornalista e me presenteou com ela. Foi o passaporte para uma grande aventura.
Eu faltava muito às aulas, já contei por que, e copiava as matérias e estudava nos finais de semana. A credencial passou a representar atividades também neste período. Passei a ter acesso livre aos clubes, o Sorocaba Clube, o Recreativo, o Circolo, eventos, festas, etc. As TVs eram ainda uma realidade distante e rara da população naquela época e as mídias escrita e falada dos jornais e rádios eram proporcionalmente muito mais importantes do que são nos dias de hoje. Outro fato daquela[epoca é que os clubes eram muito mais ativos. Havia bailes, shows, eventos, praticamente todas as semanas, com grande afluência.
Um dia surge na redação um senhor que se apresenta como o mímico Ricardo Bandeira. Eu nunca tinha ouvido falar nele e não havia Google que pudesse nos informar. Mostra diversos cartazes de suas apresentações e várias deles em alfabeto cirílico, em idioma russo. Contou que tinha acabado de vir da Rússia onde ficou por algum tempo fazendo shows. Disse que falava um pouco de russo. Era um comunista romântico, tipo o Jorge Amado ou Oscar Niemeyer. Embora papai detestasse os comunistas, pelo fato de ele poder exercitar o idioma natal eu levei o sr. Bandeira para casa, onde ele ficou hospedado. Foi uma festa. Litros de vodka e contínuas gargalhadas pontuaram os dias seguintes. Consegui uma apresentação do mímico, se não me engano no Recreativo, com entradas pagas. Embora não houvesse tanto público foi maravilhoso. E hoje vejo no Google que ele foi considerado talvez o maior mímico do Brasil, um dos melhores do mundo. Ele me pagou uma comissão. Foi o primeiro e único cachê que ganhei na vida.
No meio da Rua Carlos Gomes, aquela travessinha ao lado da Catedral funcionava uma das mais famosas boutiques da cidade, chamada Sinhá, que pertencia ao casal Terezinha e Levy, um simpático senhor, talvez de origem francesa. Quem os apresentou a mim foi a Leila Puglia, nem me lembro por que, mas o que sei é que lá trabalhava uma linda jovem chamada Marlene Valdeliz. Por conta do seu encanto eu descia todas as tardes da redação para a boutique com a desculpa de tomar café, e só para revê-la. Como eu já comentei a credencial de jornalista me dava livre acesso a todo tipo de eventos na cidade e em certa ocasião eu a convidei para o carnaval dos americanos no Sorocaba Clube. Voltamos de madrugada, a pé, até a Rua Santa Catarina onde ela morava, já enamorados e ela se tornou dois anos depois a minha primeira esposa.
No buracão do Vergueiro, uma das primeiras obras foi uma Igreja Adventista, cuja construção foi comandada por um simpático pastor chamado Flávio Garcia. Como eu havia estudado alguns meses, no ginásio, no Colégio Adventista Campineiro em Hortolândia, (e destaco que a qualidade da educação adventista faz uma grande diferença na vida de um estudante) ajudei a fazer campanha para a construção da Igreja. Aquele enorme espaço vazio começava a desaparecer. O meu querido Romeu-Sergio Osório contou que da janela do quarto dele na Av. Barão de Tatuí ele via a Rua Humaitá por sobre aquele imenso descampado.
Além da disciplina do Colégio Adventista, de liberdade com responsabilidade que a gente carrega por toda a vida (hoje eu sei que é baseada na pedagogia de John Dewey), uma memória engraçada é de quando me candidatei ao coral da Colégio, que é famoso e proporcionava alguns privilégios como as constantes viagens para apresentações, fui fazer um teste com a maestrina Flávia. Depois de alguns solfejos ela, sorrindo, me disse, Michael você tem tudo para ser cantor, faltam só três detalhes. – Quais professora? Voz, ritmo e afinação.
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