Meu pai não gostava de falar sobre a sua família e muito menos ainda sobre os tempos da guerra. Ao longo de muitos anos fomos arrancando alguma informação, aqui e ali, sobre tais assuntos, especialmente a Alice, com quem ele gostava de conversar quando estava já nos seus últimos anos morando na casa de minha irmã.
Nós não podemos imaginar os horrores da guerra
vendo os filmes de cinema e televisão. A dor, o sofrimento e a barbárie excedem
a prodigiosa imaginação dos roteiristas. Papai esteve durante cerca de três
anos na defesa de Leningrado ante a tentativa das tropas alemãs de destruição
da cidade. Quase um milhão e meio de habitantes morreram durante o cerco,
milhares deles de fome. Tornaram-se habituais casos de roubo de cartões de
racionamento (a ração era 250 grs. de pão por dia) e até mesmo de canibalismo.
Nenhum animal sobreviveu, cavalos, cães, gatos, pombos, todos viraram comida. O
frio absurdo fazia com a cidade fosse sendo queimada casa por casa para aquecer
os sobreviventes, fantasmas esfomeados que vagavam trôpegos, em andrajos, pelas
ruas congeladas. E o exército alemão bombardeava continuamente sem alvo
determinado, valia destruir qualquer coisa.
Um hospital que tinha dezenas de crianças feridas
internadas, muitas em estado grave, foi bombardeado. As crianças sobreviventes
encontravam-se em estado desesperador e não havia para aonde levá-las, não
havia comida, não havia medicamentos, ninguém queria recebê-las em casa, a
temperatura era de cerca de trinta graus negativos e não havia agasalhos. O
General Georgy Zhukov, que comandava as tropas soviéticas, confrontado com o
problema reuniu seus oficiais, expos o problema e pediu sugestões. A decisão
foi matar as crianças para que tivessem uma morte menos dolorosa do que
abandonadas ao relento, à fome, ao frio e à dor dos seus ferimentos. Oficiais
cumpriram a ordem chorando. Papai se negou a isso, mas assistiu e nunca mais se
esqueceu. Foi um fantasma que o acompanhou pelo resto da vida.
Ele não gostava de ver filmes de guerra na TV,
dizia que era tudo fantasia. Mas lia os jornais diariamente, principalmente o
Estadão e acompanhava os noticiários na TV. Sabia tudo o que acontecia no
mundo. Era a época da guerra fria e ele dizia que os ocidentais não entendiam a
dissimulada mentalidade soviética, de como eles inventavam mentiras nas quais
eles próprios passavam a acreditar e na extrema agressividade e valentia de um
povo que descendia dos vikings e se estabeleceu em uma das mais inóspitas
regiões do mundo. O nome Rússia, vem do nome do chefe viking Rus, que saqueou Constantinopla
no século IV e criou naquele remoto local o que viria a ser este país.
Ele adorava o Brasil e se revoltava quando um
brasileiro falava mal do país. E com seu sotaque carregado dizia: - o senhorrrr
sabe quando frrrango fica congelado no geladeirrra, como pedrrra. São quatrrrro
graus menos. Lá no Russia é trrrrinta graus menos. Senhorrrr vai prá la verrrr
se é melhorrr.
Da sua família eu soube apenas que teve irmãos e
irmãs e uma pequena foto desbotada de uma gorda matrona que o acompanhou pela
vida toda seria de sua mãe, minha avó, Ita ou Ida, eu nunca soube o certo. De
quem teria sido meu avô eu nunca ouvi uma palavra sequer.
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