Havia ainda outras
famílias judias em Sorocaba. Os pais dos irmãos Epelman, Sr. Samuel e D. Fanny,
que também tinham comércio na Rua Barão do Rio Branco, os Crochik, na mesma
rua, o engenheiro têxtil da Companhia Nacional de Estamparia Isaac Lederman que
construiu umas das casas mais bonitas da cidade em Santa Rosalia vendida depois
ao industrial Alfredo Metidieri e talvez outros me fujam da memória. Com a
ajuda dos leitores tentarei preencher estas lacunas. Existe um ditado iídiche
que diz que onde há um judeu há uma forte opinião, onde há dois judeus há duas
fortes opiniões opostas e onde há três judeus há confusão. Apesar da colônia
ser pequena havia grupinhos e alguns deles não se falavam, a não ser nas festas
da sinagoga quando eram obrigados a conviver. Papai circulava com desenvoltura
por todos os grupos por várias razões. A primeira era o seu temperamento
bonachão. Rigoroso e disciplinador em casa, quando na rua era simpático, alegre
e festeiro. Muitos anos depois descobrimos que era bipolar, naquele tempo se
chamava psicose maníaco-depressiva, o que criou problemas em sua velhice. O
outro é o fato que era “russiche” e vou explicar no próximo parágrafo. E
finalmente porque era ex-combatente, e isso gerava uma aura de profundo
respeito por parte da colônia.
Existem dois
principais grupos de judeus no mundo, os “ashkenazin”, que são os da Europa
Oriental e da Ásia e os “sefaradim”, da Península Ibérica e do norte da África.
O segundo grupo é que foi a principal vítima da Inquisição. O hebraico era uma
língua litúrgica, somente utilizada nos ritos religiosas. Apenas depois da
formação de Israel passou a ser um idioma comum. O primeiro grupo se comunicava
em iídiche, o segundo em ladino. Embora sejam os mesmos livros sagrados existem
pequenas diferenças nos rituais de ambos os grupos e até hoje eles têm
sinagogas separadas. Dentro dos grupos existem subgrupos. Os “ashkenazin” têm
os “russiche”, os “poiliche” e outros (da Rússia, da Polônia etc.). Por ser a
Rússia o principal país da extinta URSS, os descendentes de russos mereciam uma
avaliação especial, mais ou menos como os ridículos juízos de valor que nós
mesmos fazemos entre os nordestinos e os cariocas.
Ouvi em alguma
ocasião um dito atribuído ao General Douglas Mc Arthur de que o alimento da
coragem é o medo e que por esta razão os soldados metidos naquele inferno da
guerra dão mostras de coragem absurda. Não sei se o dito é mesmo dele e ignoro
se o fato é verdade, mas certamente se aplica a papai cuja coragem era tamanha
que se poderia confundir a valentia com temeridade. Não somente a coragem
física, uma vez que soldados são treinados para isso, mas a audácia mental de
quem joga para ganhar, sem receio de vir a perder. Um episódio ilustra isso.
Quando meu pai
começou a circular em Parada do Alto, Barcelona, Votorantim, Piedade e outros
locais vendendo suas roupas o clima em Sorocaba no inverno era muito rigoroso e
os clientes passaram a encomendar cobertores. A medida que as encomendas
aumentavam ele decidiu ir buscar os cobertores na fonte, em São José dos
Campos, na Tecelagem Parahyba, que era a maior fábrica de cobertores do país e
a responsável por um famoso jingle publicitário que até hoje todas as pessoas
de minha idade sabem de cor. “Já é hora de dormir, não espere mamãe mandar, um
bom sono prá você e um alegre despertar”.
Ele foi de trem,
era o famoso trem de prata que fazia a linha São Paulo-Rio de Janeiro. Chegou
de manhãzinha em S.J. dos Campos e apresentou-se à portaria da enorme fábrica,
com seu terrível sotaque, querendo falar com o dono. Claro que não foi
recebido. Sentou-se então, contava, na calçada em frente, pensando que em algum
momento o dono deveria passar por ali. Papai era simpático e comunicativo e
alguém da recepção levou a informação daquele estrangeiro com sotaque esquisito
e do que ele estava fazendo e por incrível que pareça, um dos donos, Severo
Gomes, que viria a ser um político famoso anos depois, foi até lá para ver a
história. Não imagino como foi a conversa, mas conhecendo meu pai ele deve ter
dito ao industrial que tinha força para trabalhar e juízo para não fazer
besteira. Eram outros tempos. Sem ter que provar nada ele ganhou uma linha de
crédito da fábrica e se tornou um dos maiores revendedores de cobertores da
região, que ajudou bastante a formar o seu fundo de comércio e o progresso
financeiro decorrente disso. Anos depois, ao ver o então ministro Severo Gomes
na TV, comentava – foi este o homem que me ajudou sem me conhecer.
Como ele já não
está mais entre nós e de qualquer forma a esta altura já não importa mais, há
que destacar o assédio que meu pai sofria de suas clientes, encantadas com
aquele europeu bonito, de bons modos, gentil e sempre disposto a galanteios. Eu
sei que ele fez grande sucesso entre as mulheres, mas sempre foi provedor e
respeitoso em casa e meus pais acabaram por ter mais dois filhos, Arkádio
César, 15 anos mais jovem do que eu, e Raquel, 18 anos mais jovem, o que faz
supor que papai sempre esteve em boa forma.
Sentindo o
crescimento e o progresso da cidade e do estado de São Paulo de maneira geral,
ele passou a investir em imóveis. Comprou dois apartamentos que mandou emendar
em um só em frente ao Parque Trianon, na Alameda Casa Branca, uma travessa da
Avenida Paulista, comprou um apartamento de frente para o mar em Santos, no
Embaré, onde eu, garoto, tive a oportunidade de brincar uma bolinha na praia
com os jogadores do ataque do Santos, Dorval, Coutinho, Mengalvio, Pelé e Pepe.
Naquele tempo os jogadores de futebol não usavam brinco e nem tatuagens, não
tinham “frescuras” e ficavam na praia batendo bola como qualquer mortal.
Comprou ainda uma casa bem maior em uma esquina da Rua Gustavo Teixeira, em
frente ao Colégio Salesiano para onde a família se mudou. Foi a nossa última
residência em Sorocaba. Papai havia adquirido um enorme terreno em Itu, em uma
área elevada atrás da rodoviária daquela cidade e lá construiu a mansão com que
sempre sonhou. Meus irmãos Arkádio e Raquel foram criados em Itu. Ele foi
estudar e morar na África do Sul, passou cinco anos no Egito e é um diretor de
arte publicitário com dezenas de prêmios. Rachel mora em Israel
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