A alegoria de Jó, se corretamente entendida, nos dá a chave para todo esse assunto do Diabo, sua natureza e seu ofício, e substancia nossas declarações. Que nenhum indivíduo piedoso se alarme com essa designação de alegoria. O mito era o método favorito e universal de ensinar nos tempos arcaicos. Paulo, escrevendo aos Coríntios, declara que toda a história de Moisés e dos israelitas era típica; e na sua Epístola dos Gálatas afirma que toda a história de Abraão, suas duas esposas e seus filhos era uma alegoria. De fato, segundo toda probabilidade, que raia à certeza, os livros históricos do Velho Testamento tinham o mesmo caráter. Não tomamos liberdade extraordinária com o Livro de Jó, quando damos a ele a mesma designação que Paulo dá às histórias de Abraão e Moisés.
Mas devemos, talvez, explicar o uso antigo da alegoria e da simbologia. A veracidade da primeira devia ser deduzida; o símbolo expressava alguma qualidade abstrata da Divindade, que os leigos podiam apreender facilmente. Seu sentido superior terminava aí e era empregado pela multidão, portanto, como uma imagem a ser utilizada em ritos idólatras. Mas a alegoria foi reservada para o santuário interior, onde só os eleitos eram admitidos. Donde a resposta de Jesus, quando os seus discípulos o interrogaram em virtude de ele ter falado à multidão por meio de parábolas. "A vós outros", disse ele, "vos é dado saber os mistérios do Reino dos Céus, mas a eles não lhes é concedido. Porque ao que tem, se lhe dará, e terá em abundância; mas ao que não tem, até o que tem lhe será tirado". Nos mistérios menores, lavava-se uma porca para exemplificar a purificação de neófito; a sua volta à lama indicava a natureza superficial da obra que fora realizada.
Toda a alegoria de Jó é um livro aberto para quem compreende a linguagem pictórica do Egito, tal como ela está registrada no Livro dos mortos. Na Cena do Julgamento, Osíris aparece sentado em seu trono, segurando em uma das mãos o símbolo da vida, "o garfo da atração", e, na outra, o leque báquico místico. Diante dele estão os filhos de Deus, os quarenta e dois assessores dos mortos. Um altar está imediatamente diante do trono, coberto de oferendas e rematado pela flor do lótus sagrado, sobre a qual se podem ver quatro espírito. Na porta de entrada, permanece a alma que está prestes a ser julgada, a quem Thmei, o gênio da Verdade, está recebendo a conclusão da provação. Thoth, segurando um junco, registra os procedimentos no Livro da Vida. Hórus e Anubis, diante da balança, inspecionam o peso que determina se o coração do morto equilibra ou não o símbolo da verdade. Num pedestal está um prostituta - o símbolo do Acusador.
A iniciação nos mistérios, como todas as pessoas inteligentes sabem, era uma representação dramática das cenas do mundo subterrâneo. Assim se desenvolve a alegoria de Jó.
Vários críticos têm atribuído a autoria desse livro a Moisés. Mas ele é mais antigo do que o Pentateuco. Jeová não é mencionado no poema; e, se o nome ocorre no prólogo, esse fato deve ser atribuído ou a um erro dos tradutores, ou à premeditação exigida pela necessidade posterior de transformar o politeísmo numa religião monoteísta. Adotou-se o plano muito simples de atribuir os mitos nomes de Elohim (deuses) a um único deus. Assim, em um dos mais antigos dos textos hebraicos de Jó (no cap. XII, 9), ocorre o nome de Jeová, ao passo que todos os outros manuscritos apresentam "Adonai". Mas Jeová está ausente do poema original. Em lugar desse nome encontramos Al, Aleim, Ale, Shaddai, Adonai, etc. Portanto, devemos concluir que ou o prólogo e o epílogo foram acrescentado num período posterior, o que é inadmissível por muitas razões, ou o texto foi adulterado, como o restante dos manuscritos. Assim, não encontramos nesse poema arcaico nenhuma menção à Instituição Sabática; mas um grande número de referência ao número sagrado sete e uma discussão aberta o sabaísmo, a adoração dos corpos celestes que prevalecia, naquela época, na Arábia. Satã é chamado no texto de um "Filho de Deus", membro do conselho que se apresenta diante de Deus, a quem induz a tentar a fidelidade de Jó. Nesse poema, mais claramente do que em qualquer outro lugar, vemos corroborado o significado da denominação Satã. É um termo para o ofício ou o caráter de acusador público. Satã é o Typhon dos egípcios, que grita suas acusações no Amenti; um ofício tão respeitável quanto o do promotor público em nossa época; e se, apesar da ignorância dos primeiros cristãos, ele se tornou posteriormente idêntico ao Diabo, isso não se faz com a sua conivência.
O Livro de Jó é uma representação completa da iniciação antiga e das provas que geralmente precedeu tão augusta cerimônia. O neófito se vê privado de tudo a que dava valor e afligido por uma doença abominável. Sua esposa o exorta a amaldiçoar Deus e a morrer; não há mais esperança para ele. Três amigos aparecem em cena para visitá-lo; Elifaz, o temanita culto, pleno do conhecimento "que os sábios receberam dos seus pais (...) as únicas pessoas a quem a terra foi dada"; Baldad, o conservador, que toma as coisas como elas vêem e que opina que a aflição de Jó é consequência de suas culpas; o Sofar, inteligente e habilidoso em "generalidades", mas de sabedoria superficial. Jó responde corajosamente: "Se eu errei, meu erro ficará comigo. Vós vos engrandeceis e me arguis com as minhas calamidades; mas foi Deus quem me aniquilou. (...) Por que me perseguis e não estais satisfeitos com minha carne destruída? Mas eu sei que meu Paladino vive e que num dia futuro ficará no meu lugar; e embora minha pele e tudo que a rodeia sejam destruídos, mesmo sem minha carne eu verei Deus. (...) Vós direis: `Por que o molestamos?', pois a raiz da matéria está em mim!"
Essa passagem, como todas as outras em que se poderia encontrar alusões mais tênues a um "Paladino", "Libertador" ou "Vindicador", foi interpretada como uma referência direta ao Messias; além disso, esse versículo está traduzido da seguinte maneira nos Septuaginta:
"Pois eu sei que é eterno
Aquele que há de me libertar na Terra
Para restaurar esta minha pele que sofre estes males" etc.
Na versão do rei James, como foi traduzida, ela não guarda semelhança alguma com o original. Tradutores artificiosos deram "Eu sei que meu Redentor viverá", etc. E os Septuaginta, a Vulgata e o original hebraico devem ser considerados como a inspirada Palavra de Deus. Jó refere-se a seu próprio espírito imortal que é eterno e que, quando viu a morte, o libertará desse pútrido corpo terreno e o vestirá com um novo revestimento espiritual. Nos Mistérios báquicos e eleusianos, no Livro dos mortos egípcios e em todas as outras que tratam de assuntos ligados à iniciação, esse "ser eterno" tem um nome. Para os neoplatônicos era o Nous, o Augoeides; para os budistas é Agra; e, para os persas, Feroher. Todos eles são chamados de "Libertadores", "Paladinos", "Metatrons", etc. Nas esculturas mítricas da Pérsia, o feroher é representado por uma figura alada que volteia no ar sobre seu "objeto" ou corpo. É o Eu luminoso - o Âtman dos hindus, nosso espírito imortal, o único que pode redimir nossa alma, e o fará, se o seguirmos em vez de sermos arrastados pelo nosso corpo. Portanto, nos textos caldaicos, lê-se "Meu libertador, meu restaurador", isto é, o Espírito que restaurará o corpo decaído do homem e o transformará numa vestimenta de éter. E é esse nous, augoeides, Feroher, Agra, Espírito dele mesmo, que o triunfante Jó verá sem sua carne - isto é, quando tiver escapado da sua prisão corporal -, e ao qual os tradutores chamam "Deus".
Não só existe a mínima alusão no poema de Jó a Cristo, como também se provou que todas as versões feitas por tradutores diferentes, que concordam com a do rei James, foram escritas com base em Jerônimo, que tomou estranhas liberdades em sua Vulgata. Ele foi o primeiro a enxertar no texto esse versículo de sua própria criação:
"Eu sei que meu Remidor vive,
E que no último dia eu me erguerei da terra,
E serei novamente recoberto de minha pele,
E em minha carne verei meu Deus".
Tudo o que lhe deve ter parecido uma boa razão para crer que ele o sabia, mas que outros não sabiam, e que, além disso, encontravam no texto uma ideia bastante diferente - isso só prova que Jerônimo decidira, com mais uma interpolação, reforçar o dogma de uma ressurreição "no último dia", e com a mesma pele e os mesmos ossos que possuía na terra. Trata-se na verdade de uma agradável perspectiva de "restauração". Por que não ressuscitar também com as mesmas roupas com que o corpo morre?
E como poderia o autor do Livro de Jó saber algo do Novo Testamento quando ignorava o Velho? Há uma ausência total de alusões a qualquer um dos patriarcas; foi sem dúvida obra de um Iniciado, pois que uma das três filhas de Jó recebeu um nome mitológico decididamente "pagão". O nome Keren happuch é traduzido de varas maneiras. Na Vulgata tem "chifres de antimônio"; e em LXX tem "chifre de Amalthea", a preceptora de Júpiter e uma das constelações, emblema de "chifre da plenitude". A presença no Septuaginta dessa heroína de fábula pagã mostra a ignorância dos transcritores em relação ao seu significado, bem como da origem esotérica do Livro de Jó.
Em vez de oferecer consolo, os três amigos do sofrido Jó tentam fazê-lo acreditar que merece sua desventura como uma punição por algumas transgressões extraordinárias que praticou. Respondendo veementemente a todas essas imputações, Jó jura que, enquanto tiver alento, manterá a sua causa.
Os três haviam tentado confundir Jó com alegações e argumentos gerais e ele lhes solicitou uma consideração dos seus atos específicos. Então surgiu o quarto: Eliú, o filho de Baraquel, o buzita, da estirpe de Ram.
Eliú é o filho do hierofante; começa com uma repreensão e os sofisma de Jó se desvanecem com a areia que o vento do oeste leva. "E Eliú filho de Baraquel, disse: `Os grandes homens nem sempre são sábios (...) há um espírito no homem; o espírito que está em mim me constrange. (...) Deus fala uma vez, uma segunda, embora o homem não perceba. Num sonho; numa visão noturna, quando o sono profundo cai sobre o homem, em cochilos na cama; então ele abre os olhos dos homens e lhes dá suas instruções. Ó Jó, ouve-me; cala-te e eu te ensinarei a SABEDORIA."
E Jó diante das falácias dogmáticas de seus três amigos, no amargor do deserto, exclama: "Não há dúvida de que vós sóis o povo e a sabedoria morrerá convosco. (...) Todos vós sóis uns consoladores miseráveis. (...) Certamente falarei ao Todo-poderoso e com Deus desejo conversar. Mas vós sois os que forjam as mentiras, vós sóis médicos de nenhum valor!"
O devorado pelas chagas, o Jó que recebera as visitas e que para o clero oficial - que não oferecia outra esperança senão a condenação eterna - havia em seu desespero vacilado em sua fé paciente, respondeu: "Isso que vós sabeis, também eu sei a mesma coisa; não sou inferior a vós. (...) O homem que como flor cai e é pisado foge como a sombra e jamais permanece num mesmo estado. (...) Quando o homem morrer, despojado que seja e consumido, onde estará ele? (...) Se um homem morrer, ele viverá novamente? (...) Quando se passarem alguns anos, então seguirei um caminho de onde não poderei retornar. (...) Oxalá se fizera o juízo entre Deus e o homem, como se faz o de um filho do homem com o seu vizinho'." Jó encontra alguém que responde ao seu grito de agonia. Ouve a SABEDORIA de Eliú, o hierofante, o mestre perfeito, o filósofo inspirado. De seus lábios rígidos brota a representação justa da impiedade de ter censurado o Ser SUPREMO pelos males da Humanidade. "Deus", diz Eliú, "é excelente em poder e em julgamento e em plenitude de justiça. ELE não condenará".
Enquanto o neófito se satisfazia com sua própria sabedoria mundana e irreverente compreensão da Divindade e Seus desígnios e enquanto dava ouvidos às sofisticarias perniciosas dos seus conselheiros, o hierofante se mantinha calado. Mas, quando essa mente ansiosa estava pronta para os conselhos e as instruções, sua voz se fez ouvir e ele fala com a autoridade do Espírito de Deus que o "constrange": "Certamente Deus não ouvirá em vão, nem o Todo-poderoso verá as causas de cada um. (...) Ele não respeitará aqueles que se dão por sábios".
Magnífica lição para o pregador da moda, que "multiplica palavras sem conhecimento"! Esta magnífica sátira profética deve ter sido escrita para prefigurar o espírito que prevalece em todas as denominações dos cristãos.
Jó escuta as palavras de sabedoria e então o "Senhor" responde a Jó "fora do redemoinho" da Natureza, a primeira manifestação visível de Deus: "Pára, Jó, pára! e considera as maravilhosas obras de Deus; só por meio delas podes conhecer Deus. `Com efeito, Deus é grande, e não o conhecemos', Ele que `faz pequenas as gotas d'água; mas elas vertem segundo o vapor"; não segundo o capricho divino, mas segundo leis estabelecidas e imutáveis; lei que "transferiu os montes e não é conhecida por eles; que move a terra; que ordena ao Sol e o Sol não nasce; e que selou as estrelas; (...) que faz coisas grandes e incompreensíveis, e maravilhosas, que não têm número. (...) Se ele vier a mim, eu não o verei; e se for, eu não o perceberei!"
Então, "Quem é este que obscurece os conselhos com palavras desprovidas de conhecimento?", diz a voz de Deus por meio de Seu porta-voz -, a Natureza. "Onde estava tu quando eu lançava os fundamentos da terra? dize-mo, se é que tens compreensão. Quem deu as medidas para ela, se é que o sabes? Quando os astros da manhã contavam todos juntos, e quando todos os filhos de Deus estavam transportados de júbilo? (...) Estavas presente quando eu disse aos mares: `Até aqui podes vir, mas além daqui; até aqui tuas orgulhosas ondas poderão rolar'? (...) Sabes quem obriga a chuva a cair sobre a terra, onde não havia homem algum; no deserto, onde não havia homem algum? (...) Acaso poderás reunir as doces influências das Plêiades ou impedir a evolução de Orion? (...) Poderás enviar os raios, que possam ir e vos dizer `Aqui estamos'?"
"Então Jó respondeu ao Senhor." Ele compreendeu quais são os seus caminhos e os seus olhos estão abertos pela primeira vez. A Sabedoria Suprema desceu sobre ele; e, se o leitor ficar confuso diante deste PETROMA final da iniciação, pelo menos Jó, ou o homem "afligido" em sua cegueira, entendeu então a impossibilidade de caçar "Leviatã cravando-lhe um arpão no nariz". O Leviatã é a CIÊNCIA OCULTA, em que se pode pôr a mão, "não mais do que isso", e cujo poder e cuja "proporção conveniente" Deus não quer esconder.
"Quem pode descobrir a superfície de sua vestimenta? e quem entrará no meio da sua boca? Quem pode abrir as portas do seu rosto? Em roda dos seus dentes está o seu orgulho, e eles estão selados. O seu espirro é resplendor do fogo e os seus olhos como as pestanas da aurora". Que "faz brilhar uma luz atrás de si", para que se aproxime dele os que não têm medo. E então eles também verão "todas as coisas altas, pois ele é rei apenas sobre todo os filhos da soberba". Jó, agora à guisa de retratação, responde:
"Eu sei que podes todas as coisas,
E que nenhum pensamento se te esconde.
Quem é este que fez uma exibição de sabedoria arcana
Sem nada saber dela?
Por isso falei sobre o que não compreendia
Coisas que estavam acima de mim, as quais não conhecia.
Ouve! suplico-te e eu falarei;
Perguntar-te-ei, e me responderás:
Eu te ouvi com meus ouvidos,
E agora te verei com meus olhos,
Por isso me repreendo a mim mesmo,
E me penitencio no pó e na cinza?"
Ele reconheceu seu "paladino" e se convenceu de que havia chegado a hora da sua vindicação. Imediatamente o Senhor ("os sacerdotes e os juizes", Deuteronômio, XIX, 17) disse aos seus amigos: "Minha ira se voltou contra ti e contra teus dois amigos, porque não me haveis falado retamente diante de mim, como meu servo Jó. Então "o Senhor voltou-se para a penitência de Jó" e "lhe deu em dobro tudo quanto ele havia tido".
Assim, no julgamento [egípcio], o morto invoca quatro espíritos que residem no Lago de Fogo e é purificado por eles. Ele então é conduzido à sua morada celestial e é recebido por Athar e por Ísis e permanece diante de Atum (Âtman a Centelha Divina que habita o Homem), o Deus essencial. Ele agora é Turu, o homem essencial, um espírito puro, e em consequência On-ait, o olho de fogo, e um companheiro dos deuses.
Esse grandioso poema de Jó era muito bem compreendido também pelos cabalistas. Enquanto muitos dos hermetistas medievais eram homens profundamente religiosos, eles eram, no fundo de seus corações - como os cabalistas de todas as épocas -, os inimigos mais mortais do clero. Como parecem verdadeiras as palavras de Paracelso quando exclamou, afligido por uma perseguição feroz e por calúnias, e incompreendido por seus amigos e por seus inimigos, maltratado pelo clero e pelos leigos: "Ó vós de Paris, Pádua, Montpellier, Salermo, Viena e Leipzig! Não sóis mestres de verdade, mas confessores de mentiras. Vossa filosofia é uma mentira. Se quereis saber o que realmente é a MAGIA, procurai-a no Apocalipse de São João. (...) Posto que não podeis aprovar que vossos ensinamentos derivam da Bíblia e do Apocalipse, acabai com vossas farsas. A Bíblia é a verdadeira chave e o verdadeiro intérprete. João, não menos do que Moisés. Elias, Enoch, Davi, Salomão, Daniel, Jeremias e os outros profetas, eram um mago, cabalista, um adivinhador. Se todos eles, ou pelo menos um dos que nomeei, vivessem agora, eu não duvidaria que faríeis deles um exemplo em vosso matadouro miserável e os aniquilaríeis e, se fosse possível, o Criador de todas as coisas também!"
Paracelso demostrou na prática que aprendeu algumas coisas misteriosas e úteis do Apocalipse e de outros livros da Bíblia, bem como da Cabala; e tanto o fez, que é chamado por muitos de o "pai da magia e fundador da física oculta da Cabala e do Magnetismo".
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