Em razão de uma tradição que se perde na bruma dos tempos a Maçonaria Especulativa está ligada ao culto de São João, culto que adopta uma forma bicéfala na veneração de São João Baptista, que coincide com o Solstício do Verão (a 24 de Junho) e com a de São João Evangelista que coincide com o Solstício do Inverno (a 27 de Dezembro).
Na tradição do Rito Escocês Antigo e Aceite, a Bíblia, o Livro da Lei Sagrada para os Cristãos, encontra-se aberto exatamente no Evangelho de São João que é o quarto livro do Novo Testamento, logo a seguir aos Livros de São Mateus, de São Marcos e de São Lucas.
Aliás, quando o Venerável Mestre dá público aviso à Loja da abertura dos trabalhos (ou do seu encerramento), invoca a natureza sacra dos trabalhos realizados à Glória do Grande Arquiteto, cita a Ordem Maçónica e a Grande Loja e declara “abertos os trabalhos desta Loja de São João” localizada a Oriente de um dado local, aditando a referência ao seu número de registo e ao nome.
Também no catecismo, repositório de instruções aos obreiros no seu talhe da pedra bruta, se inicia o ciclo de perguntas e respostas que o Aprendiz deve memorizar com o seguinte diálogo:
Meu Irmão de onde vens?
De uma Loja de São João Venerável Mestre.
Que se faz lá?
Exalta-se a virtude e combate-se o vício.
Ou seja, há uma dimensão joanina na tradição maçónica que poderá ter uma explicação litúrgica ou apenas ter a ver com as origens da maçonaria especulativa. A maçonaria especulativa tem as suas origens em Inglaterra quando em 24 de Junho de 1717 teve lugar a unificação de quatro Lojas originando a Grande Loja de Londres que mais tarde se transformaria na Grande Loja Unida de Inglaterra.
Em 1290, o Rei Eduardo I expulsou os judeus de Inglaterra e com isso terá banido qualquer referência ao Antigo Testamento das práticas religiosas inglesas. A primeira Bíblia impressa é a alemã de Gutenberg de 1534 e a primeira Bíblia inglesa é de 1545, dela não constando qualquer referência ao Antigo Testamento. Segundo a tradição maçónica de origem inglesa o primeiro Livro da Lei Sagrada colocado num Altar Maçónico foi um Manuscrito de um Evangelho segundo São João. É sobre este Livro com a mão direita aberta que os Maçons fazem o seu compromisso de fidelidade. Compromisso antes de tudo à Loja a que se pertence e em segundo lugar à Grande Loja e, que a Loja se encontra filiada.
Desta memória ficou a tradição do Livro da Lei Sagrada como Livro da Sabedoria, vontade revelada do Grande Arquiteto do Universo segundo o repositório dos homens que conviveram com Jesus ou os que receberam os ensinamentos destes.
Existe no entanto alguma confusão a que Santo se se quer referir quando se diz que São João é o Santo Patrono da Maçonaria: São João Baptista ou São João Evangelista?
João Baptista foi pregador judeu, filho de Zacarias e de Elizabete, prima de Maria, Mãe de Jesus. Como profeta é considerado, sobretudo entre os cristãos ortodoxos como o “precursor” do prometido Messias, Jesus Cristo. Batizou muitos judeus, incluindo o próprio Jesus, no Rio Jordão.
O Evangelho de São João começa exatamente com um Prólogo de dezoito versículos onde se prenuncia a vinda do Filho de Deus e se passa o testemunho daquele que o anuncia. Nas palavras do Evangelho “apareceu um homem enviado por Deus que se chamava João” “ele não era a Luz mas foi enviado para dar testemunho da Luz”.
É Jesus que o procura querendo ser batizado por ele e sobre quem João afirma a dado passo:
“Este é Aquele de quem eu disse: Ele o que vem depois de mim, tem a excelência, porquanto já existia antes de mim. E da sua plenitude todos nós temos recebido, graça sobre graça” (Evangelho de São João, Versão Bíblia King James).
João interpreta esse sacramento como expressão da orientação divina na simbologia conhecida da pomba branca que desce do Céu e poisa sobre Jesus, numa referência clara ao Espírito Santo. Para além do anunciador do Messias, João Baptista simboliza o profeta que se sacrifica pelo Mestre já que é aprisionado e depois degolado por pressão da filha do rei da Judeia, Herodes Antipas I, no ano 26 d.C. Isso vem descrito em Mateus 14:8-12.
Este João é o que precede Jesus. João Evangelista é por sua vez um dos doze apóstolos de Jesus, a ele sendo atribuída a autoria do Evangelho segundo João, das três epístolas de João (1, 2, e 3) e do livro do Apocalipse.
João é considerado o “Discípulo Amado”, tendo sido o único apóstolo que seguiu Jesus, na noite em que este foi preso acompanhando o Mestre até à sua morte na cruz, tendo-lhe sido confiada ainda a missão de cuidar de Maria, Mãe de Jesus. Depois da morte do Mestre ter-se-á dirigido à Ásia Menor, onde dirigiu a importante e influente comunidade cristã de Éfeso, fundada por Paulo anos antes. João esteve várias vezes na prisão, sendo torturado e exilado na Ilha de Patmos.
Quanto à pergunta formulada, a Maçonaria tem dois Santos Patronos. Um João anuncia a vinda do Mestre e dá testemunho da sua qualidade divina e do dever dos homens de fé o seguirem; um outro difunde a obra do Mestre após a sua morte, relata a sua vida e preocupa-se a transmitir às gerações vindouras os seus ensinamentos numa linguagem mais simples e universalizada.
A vida de ambos inspira, portanto, alguns dos valores e princípios essenciais da doutrina maçónica: a relevância da iniciação que representa – tal como o baptismo – um primeiro contacto esotérico com a Luz; a relevância do sacrifício pessoal, parte essencial da caminhada para uma maior perfeição – no limite, a promessa do sacrifício pessoal na defesa dos Irmãos e da Ordem Maçónica; a importância da difusão de valores sãos e dignos, de uma ética da dignidade e de responsabilidade caracterizadora dos Maçons e plasmada nos landmarks da Ordem.
O uso da Bíblia depende de cada Rito. No Rito de Iorque a Bíblia é aberta usualmente no Salmo 133 mas não é lida; no Rito de Schroeder a Bíblia não é aberta; no Rito Francês não há Bíblia em Loja. No Rito Escocês Antigo e Aceite a Bíblia é aberta no Evangelho de São João e são lidos os primeiros versículos, em regra de 1 a 5. Este costume foi introduzido a partir de 1877 quando o Grande Oriente de França rejeitou a crença no Grande Arquiteto do Universo como landmark da Obediência e na sequência do que foram suprimidos os juramentos sobre o Livro da Lei Sagrada. O Livro da Lei Sagrada é solenemente aberto e fechado e encontra-se exposto no Altar e virado para a Loja. Nas lojas americanas e inglesas exige-se que o Livro da Lei Sagrada esteja no centro da Loja, local onde está o altar.
O quinteto dos primeiros versículos do Prologo é, na verdade, dos poemas mais belos da história do Homem:
No princípio existia o Verbo (o Logos); e o Verbo estava em Deus; e o Verbo era Deus. No princípio ele estava em Deus, por Ele tudo começou a existir; e sem Ele nada veio `a existência. Nele é que estava a Vida de tudo o que veio a existir. E a Vida era a Luz dos Homens. A Luz brilhou nas trevas mas as trevas não a receberam.
Tal como João Baptista a Maçonaria é o testamentário na Era Moderna do caminho para a Luz, dos valores que unem os profetas de todas as religiões acima do Credo e do Dogma. Na verdade Deus é uno mas cada um o compreende e apreende da sua própria forma e tempo.
Que ligação tem o Evangelho de São João com o Salmo 133?
Por influência americana adoptou-se nalgumas jurisdições a leitura do Salmo 133 como introdutor dos trabalhos em Templo. Os Salmos – do hebraico תהילים (tehilim) ou louvores – introduzem os Livros Sapenciais, a terceira parte da Tora, colocando-se em segundo lugar logo a seguir ao Livro de Job. Os Salmos são Cânticos Religiosos atribuídos na maior parte a David, rei de Israel, facto que revela a sua importância na história judaica e o papel que teve no culto realizado no Templo de Jerusalém. Eles representavam um património muito utilizado e constituíam um elo fundamental para a transmissão da fé, sendo cantados acompanhados do saltério isto é de instrumentos musicais.
O Salmo 133 é importante porque nele está patente a mesma ideia presente no quinteto de versículos de São João que lemos: a luta da Luz contra as trevas. Diz o Salmo:
Vede como é bom e agradável
Que os irmãos estejam unidos!
É como óleo perfumado derramado sobre a cabeça
A escorrer pela barba, a barba de Aarão,
A escorrer até à orla das suas vestes.
É como o orvalho do Monte Hermon
Que escorre sobre as montanhas de Sião
É ali que o Senhor dá a sua bênção
A vida para sempre.
O Salmo parece exaltar a união dos Filhos de Israel, a sua natureza de comunidade fraterna. Comunidade que é benzida pelo óleo perfumado, um óleo raríssimo cujo segredo pertencia à tribo de Levi e cujo utilização era reservada ao Sumo Sacerdote. A menção à barba de Aarão significa o sentido de austeridade moral e gravidade que os israelitas atribuíam à sua postura moral como povo.
Aarão, irmão mais velho de Moisés, membro da tribo de Levi teve um papel fundamental na libertação dos judeus do jugo dos egípcios, sendo intérprete de Moisés junto do Faraó. Em termos metafóricos as primeiras estrofes do Salmo querem dizer que só os que são exaltados com uma conduta irrepreensível em defesa do seu povo e da sua religião podem ser obsequiados pelo perfume raríssimo dos que privam com os Sacerdotes. Os quatro últimos versículos da estrofe simbolizam que a amizade fraterna é como a água da manhã (o orvalho) que alimenta e sacia a terra ávida de alimento, que escorre até às Montanhas doe Sião, Montanhas que o Senhor Deus escolheu como morada. Uma morada inacessível e inabalável.
É nessa morada que o Senhor ordena as bênçãos e atribui a Graça aos que o seguem e ela constitui vida para sempre, isto é, a Vida Eterna. Traduzindo isto em linguagem maçónica, aqueles que procuram a Luz em todos os aspectos da sua vida, que procuram a bênção do Grande Arquitecto nos trabalhos que dedicam à sua Glória, corporizam o Aarão bíblico libertando o seu povo do cativeiro do Egipto e levando-o à Terra Prometida. A bênção significa essa procura da Luz interior, o despertar da potencialidade energética que vive dentro de cada um de nós.
“Vede como é bom e agradável que os irmãos estejam unidos!” significa que a procura da Luz é dinamizada em todo o seu potencial quando os Irmãos canalizam as suas energias para propósitos positivos, se unem no mesmo projeto coletivo: a construção do Templo externo e do Templo interior em si próprios. Deus na sua morada eterna, o Monte Sião, apenas pode inspirar com a sua Graça a conduta dos que se reconduzem aos seus ensinamentos. A fraternidade deve imperar entre todos sem reservas, barreiras e sofismas mas ela não tem o mesmo significado que no mundo profano. O meu vizinho (frater) é como o orvalho que cai sem obstáculo, por isso a amizade deve ser sem sofisma, sem reservas.
O princípio cardial é do Evangelho, mas também do Corão, de todos os livros sagrados é representado pelo aviso feito depois da prova do fogo na cerimónia da iniciação: nunca faça a outrem o que não gostaria que lhe fizessem a si; faça aos outros todo o bem que gostaria que eles fizessem”. Pois só assim fazendo, teremos a certeza de que o Senhor fará derramar a vida e a Sua benção entre nós, para todo o sempre.
Assim seja, A bem da Ordem.
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