Vejam como é bom, como é agradável os irmãos viverem unidos…” (Sl 133)
Os trabalhos da Maçonaria Moderna [1] ocidental referenciada nos Ritos mais praticados têm início com uma exortação, invocando o auxílio (Publicado em freemason.pt) do Grande Arquiteto do Universo, o Deus que criou tudo o que existe, estando a Bíblia presente durante as reuniões, com foco na fraternidade, evocando espiritualidade e harmonia, assim como na valorização dos esforços e como fonte de ensinamentos de regras de conduta.
A Constituição da GLMMG, no seu artigo 22, dispõe:
§ 3°A Grande Loja adopta, na sua ação filosófica, ritualística e social, os Landmarks de Mackey e a Constituição de Anderson. O 21° Landmark exige “que um Livro da Lei seja parte indispensável dos utensílios de uma Loja”.
Os 25 Landmarks compilados pelo médico e historiador maçónico americano Albert Gallatin Mackey em 1858 são adoptados pelas Potências [2] Maçónicas latino-americanas e por algumas Grandes Lojas da América do Norte.
O número de Landmarks pode variar de acordo com o Rito e o País. São conhecidos ainda Landmarks de Findel, de Lecerff, de Pound, de Grant e outros. A Grande Loja Unida da Inglaterra reduziu a oito o número de Landmarks, constando do sexto a exigência da presença do “Livro da Lei Sagrada” durante os trabalhos.
Em maçonaria Landmark corresponde ao termo apropriado pela primeira vez na “Constituição de Anderson”, no ano de 1723, com o sentido de marcos, limites ou regras de conduta. Se uma só destas regras não for observada, a Potência rebelde é declarada “Irregular”.
James Anderson, escocês e pastor da Igreja Presbiteriana em Londres, escreveu a Constituição que leva o seu nome ou Constituição dos Maçons Livres, que foi reformada e republicada em 1738. Muitos autores atribuem a Anderson a criação da maçonaria simbólica, em função deste trabalho, mas há controvérsias. Segundo crítica de Castellani, “o imaginoso Anderson” tomou a Bíblia como modelo, considerando maçons todos os que nela apareciam, contribuindo para criação de patranhas e desencontros que ainda repercutem.
Tema recorrente na maçonaria, a Bíblia ou Livro da Lei [3] ou ainda Volume da Lei Sagrada (VLS) ou Livro das Sagradas Escrituras, representa a fé pessoal e alude a um código de moral e ética sobre o qual se presta um compromisso solene, não ensejando um ritual religioso. Dos seus membros a maçonaria exige a crença em Deus, na condição de que cada um livremente encontre conforto espiritual na sua crença. Já a questão envolvendo religiões é objecto de estudos históricos, filosóficos e de reflexão.
A revolucionária invenção de Gutenberg possibilitou que a Bíblia fosse o primeiro dos livros inteiros publicados pela técnica da imprensa, processo este que se iniciou cerca de 1450 e foi concluído em 1455. [4] A tradução para o alemão em 1522 (Novo Testamento) e a edição completa em 1534, baseada num trabalho coordenado pelo ex-frade agostiniano Martinho Lutero [5] (excomungado pelo Papa Leão X, em 1521), tornou-se um forte instrumento posteriormente usado pelos reformadores (João Calvino, na França, e Ulrico Zuínglio, na Suíça), permitindo a massificação das traduções sem a necessidade de aprovação eclesiástica.
Em 1534, no Ato de Supremacia em que Henrique VIII consolidou a Reforma Anglicana, com o rompimento entre a Inglaterra e o Papa Clemente VII, autoproclamando-se o chefe da Igreja do seu país, dentre outras medidas, pregou-se a popularização da leitura da Bíblia. [6]
A primeira versão bíblica autorizada na Inglaterra, traduzida do original hebraico e grego para o inglês, a pedido do rei James I da Inglaterra, foi publicada em 1611, conhecida como a Bíblia do Rei James. Até então era utilizada a versão em inglês da Bíblia de Genebra de 1560.
A introdução da Bíblia nas reuniões maçónicas foi sugerida por George Payne, em 1740, como bajulação à Igreja Anglicana, e não à Católica, pois naquela época era a primeira que predominava na Inglaterra, conforme ensina Castellani. Embora citada em vários documentos, não se (Publicado em freemason.pt) tem notícias da Bíblia permanecendo sobre o Altar dos Juramentos durante as sessões de trabalho. Há autores que registam o seu uso em 1670. Nos rituais de cerca de 1760 é referenciada como uma das três grandes luzes, com lugar de honra nas Lojas.
Os “Antigos Deveres” ou “Old Charges” [7] não permitem comprovar que a Bíblia fosse empregada nas lojas operativas inglesas antes da Reforma. O banir dos judeus de toda a Grã-Bretanha – e com eles, todos os seus costumes, as suas leis, as suas tradições – pelo Édito do rei Eduardo I, em 1290, foi motivo para o sumiço do Velho Testamento. A anulação deu-se por ato de Oliver Cromwell mais de 350 anos depois, em 1656.
O que se sabe é que os novatos juravam ser fieis às confrarias estendendo a mão direita sobre o Livro dos Evangelhos, sendo o preferido o de São João, festejado por ocasião das colheitas. Consta que no manuscrito “Harleim”, de cerca de 1600, a Obrigação de um iniciado fecha com as palavras: “Me ajude Deus e o conteúdo deste livro sagrado”.
Segundo Assis Carvalho (1997), não se tem notícias do uso da Bíblia antes de 1600. Aduz que os Estatutos de Schaw, datados de 1598, não a mencionam, mas fazem referência a contos bíblicos e lendas contadas aos obreiros. O documento de William Schaw estabelecia os deveres de todos os Mestres Maçons dentro do reino da Escócia, de onde se especula tenha a moderna maçonaria sido criada, de acordo com argumentação defendida por David Stevenson, no livro “As Origens da Maçonaria – O Século da Escócia – 1590-1710”.
O juramento sobre a Bíblia é uma tradição da herança cristã inglesa e não tem valor a não ser que ele tenha um significado sagrado, sendo visto por muitos como resultado da forte influência eclesiástica no ocidente, ratificando o poder da religião nos usos e costumes. É praxe nos tribunais ou nas solenidades de posse de presidentes americanos. George Washington ao ser empossado como primeiro Presidente da República, em 30 de Abril de 1789, prestou o seu juramento sobre uma Bíblia pertencente à Loja St John, n° 1, filiada na Grande Loja de Nova York.
O Livro da Lei ou o Livro Sagrado utilizado em determinadas sessões é aquele representativo da orientação religiosa do obreiro, podendo optar-se, nos casos de juramentos iniciáticos, quando o candidato faz a promessa da sua Obrigação, pelo uso do Alcorão ou da Torá, quando se tratar de muçulmanos ou judeus, respectivamente, dentre outros livros básicos de natureza religiosa. Não oferecer esta alternativa seria negar a universalidade da Maçonaria.
Existem ainda ritos ditos racionalistas ou adogmáticos que dispensam este procedimento, sob o argumento de que as concepções metafísicas dos maçons são consideradas de foro íntimo e ainda como sinal de respeito à liberdade de consciência e sem imposição de padrão religioso, com os compromissos de honra sendo assumidos sobre a Constituição de Anderson ou sobre a Constituição das Potências às quais pertença a Loja, como é o caso do Rito Moderno ou Francês.
No Rito Moderno “não se pergunta aos candidatos qual a religião que professam por ser, isso, da consciência individual de cada um, e não caber, a quem quer que seja, o direito de devassá-la” (Castellani, 1987). Citando Oswald Wirth, Boucher (2015) afirma: “Os anglo-saxões, ao exigir a Bíblia, e somente a Bíblia, negam a universalidade da Maçonaria e, se encararmos o problema desse ponto de vista, a “irregularidade” está do lado deles, e não do nosso”.
Os ritos representam um conjunto de regras e preceitos com os quais se desenvolvem os trabalhos, e entre os mais praticados sobressaem os de orientação latina e os anglo- saxões. O Rito Escocês Antigo e Aceito (REAA) [8], de inspiração católica e teísta, é o mais praticado e tem a sua origem em França, em 1756, sendo posteriormente alterado nos Estados Unidos, em 1801, com o aumento dos seus graus de 25 para 33 [9], por norte-americanos de origem judaica. Em 1855, o advogado, militar, escritor e Maçom norte-americano Albert Pike iniciou revisão do REAA, que culminou com a publicação em 1872 da obra “Moral e Dogma”, considerada um clássico da maçonaria moderna.
Os três primeiros graus, de Aprendiz, Companheiro e Mestre, chamados Simbólicos, são comuns em todos os ritos, com pequenas diferenças. Foram reorganizados entre os anos de 1700 e 1725. [10] Novos elementos, sob a forma de (Publicado em freemason.pt) alegorias e lendas foram inseridos entre 1730 e 1745. Os superiores ao 3° compõem os chamados Altos Graus, conhecidos genericamente como Graus Filosóficos.
Em todos estes graus os trabalhos são realizados com a Bíblia Sagrada aberta e lida em passagens diferenciadas, variando do Genesis ao Apocalipse, não como um culto religioso, “mas como ensinamentos práticos e uma das formas de se estabelecer sempre uma boa fraternidade e uma maior solidariedade.” (Vasconcellos, 1999). Há ritos que regulamentam apenas a sua presença sem o procedimento de abertura e/ou leitura. [11]
O local das atividades maçónicas comumente denominado Oficina, Loja ou Templo tem como modelo o Parlamento britânico e as Catedrais, de onde foram copiadas a orientação e a divisão. As lendas que ilustram a maçonaria não têm nenhum compromisso com verdades históricas, mas compõem as bases dos seus ensinamentos. Já os símbolos da arte de construir representam ideias e mensagens que são restritos aos iniciados e funcionam como veículos para que cada um descubra as suas próprias verdades por meio de pesquisas e estudos.
A influência da Bíblia reflete-se em várias situações e tem inspiração por analogia simbólica no Tabernáculo Hebreu e no Templo de Jerusalém, mesmo que indiretamente, conforme assinala José Castellani. E esta associação de imagens tem reflexos das raízes operativas da maçonaria agrupadas na visão dos construtores de catedrais da Idade Média, cuja corporação era uma das mais organizadas e fechadas da época.
É grande o número de nomes e símbolos tomados da Bíblia pela maçonaria, que adaptadas e aplicadas em alguns graus e à cultura maçónica, têm como objetivo transmitir didaticamente uma lição simbólica ou moral, como já assinalado. Importa ressaltar que a maçonaria não é de origem judaica e não faz nenhum vínculo de continuidade com a construção liderada pelo Rei Salomão, a ponto de dizer que naquela época haveria uma instituição maçónica. Alegoricamente, sob o simbolismo da arquitetura, a obra que se deve edificar é o Templo Interior, no sentido esotérico representado pela moral, carácter e personalidade, com inspiração na narrativa bíblica contida em 1Cor 3,16. [12]
Como suporte lendário, na concepção da Loja é marcante a figura emblemática do arquiteto que dirigiu as obras da construção do Templo de Jerusalém, o Mestre Hiram de Tiro (1Rs 7,13 – 2Cr 2,13), que personifica a Virtude. Destacam-se, inicialmente, as duas colunas ornamentais situadas à entrada, citadas em 1Rs 7,21 e em 2Cr 3,17, [13] significando força e beleza. Neste contexto, aceito que o templo maçónico pode ainda simular a terra, essas colunas representam os solstícios de Inverno, presidido por João Batista, e o de Verão, por João Evangelista, ambos os patronos da Maçonaria.
Da mesma fonte, quase todos os ornamentos e nomenclatura foram copiados, como o altar para os juramentos (Altar dos Sacrifícios), a mesa para queimar incensos (Altar dos Perfumes), a pia para as abluções (Mar de Bronze), o candelabro de sete braços (Menorá), a Estrela de Davi (Selo de Salomão), dentre outros suportes relativos à tradição judaico-cristã ou acontecimentos históricos e míticos.
Apropriou-se também do valor significativo da Acácia, [14] árvore mencionada em Ex 35,24 e sagrada entre os hebreus, cuja madeira foi utilizada na construção do Tabernáculo, pela sua resistência e reputação de incorruptível, devido às suas resinas. Da mesma forma foi também incorporado o simbolismo do trigo, cereal nobre, que na Bíblia representa o alimento espiritual, o pão da vida, a comunhão entre irmãos, etc.
Do 28° Capitulo do Livro do Génesis, foi introduzida a alegoria da visão da Escada de Jacob, fazendo alusão ao ciclo evolutivo da vida, representado pelo progresso moral (Publicado em freemason.pt) e intelectual, vez que a maçonaria vislumbra na escada um símbolo de progresso que cada Maçom deverá galgar para atingir um estado de consciência plena, com Fé (determinação), alimentado pela Esperança e no exercício da Caridade para com os seus semelhantes. O número de degraus é indeterminado conforme as virtudes necessárias ao aperfeiçoamento do Maçom.
Os ritos maçónicos seguem um calendário onde se adiciona o número simbólico 4.000 à era vulgar, baseado na história bíblica da criação do mundo. A maçonaria moderna buscou ainda na Bíblia os mistérios relativos às “Palavras de Passe“ e às “Palavras Sagradas”, além de acontecimentos históricos e nomes sagrados emprestados aos Graus Filosóficos, de forma que o Maçom possa inspirar-se, juntamente com cada objeto, utensílio e adorno, transferindo a filosofia destes elementos para o terreno espiritual, a fim de erigir dentro de si mesmo um Templo da Virtude, um local de comunhão íntima dedicado ao culto ao Criador.
Enfim, como observa Jules Boucher:
“Os Maçons não tentam reconstruir materialmente o Templo de Jerusalém; é um símbolo, nada mais – é o ideal jamais terminado, onde cada Maçom é uma Pedra, preparada sem machado nem martelo no silêncio da meditação”.
Notas
[1] Conhecida também como Maçonaria Especulativa, organizada a partir de 1717, teve como precursora a Maçonaria Operativa à qual pertenceram os profissionais ligados à arte de construir na Idade Média.
[2] Chama-se Obediência, ou Potência Maçónica, uma aliança de Lojas subordinadas à mesma orientação superior. São Obediências: as Grandes Lojas e os Grandes Orientes (Castellani, 1987).
[3] Simbolismo apropriado de 2Rs 22,8.
[4] Até então, a Bíblia era um livro raro e manuscrita, contando com o trabalho dos monges copistas, de difícil acesso e com o predomínio do Latim, sendo um privilégio do alto clero. Há fontes que afirmam que aos católicos comuns era proibida a sua leitura, porque eles não dispunham de capacidade para entendê-la.
[5] O privilégio atribuído a Lutero de ter traduzido, pela primeira vez, a Bíblia para uma língua moderna, é contestado por vários autores.
[6] O estudo sobre a Bíblia pelos protestantes vem de longa data, ao passo que entre os católicos tal prática somente se manifestou a partir dos anos de 1960, em decorrência do Concílio Vaticano II.
[7] O “Poema Regius” ou “Manuscrito Halliwell”, provavelmente de 1390, e o “Manuscrito de Cook”, estimado de 1450, são silenciosos a respeito.
[8] Embora nascido na França, o titulo “Escocês” é vinculado aos Stuarts ingleses, destituídos do trono da Inglaterra e refugiados na França, em duas oportunidades, durante os anos de 1649 e 1688. Epíteto aplicado aos partidários da dinastia Stuart (jacobitas), originários da Escócia, com quem começou a surgir e de onde o rito adquiriu o título.
[9] Segundo Castellani (1987), os irmãos Drake, que moravam em Charleston, por onde passa o paralelo 33, elevaram os graus para 33, em homenagem ao paralelo. Outras hipóteses sobre este número abundam.
[10] A Maçonaria só passou a ser iniciática a partir da criação do 3° Grau (1725). Até então não havia “Iniciação” e sim uma “Recepção de um novo membro ou sócio” que consistia de um compromisso prestado sobre o Livro de Registro da Confraria e, tempos mais tarde, sobre o Evangelho de São João (Carvalho, 1997). Outras fontes registam a criação deste grau em 1723 e efectiva implantação em 1738.
[11] No Rito de York e no Ritual de Emulação é aberta para os trabalhos, mas não é lida. No Rito de Schroeder permanece fechado. No Rito Adonhiramita é aberta e lida uma passagem.
[12] “Vocês não sabem que são templo de Deus e que o Espírito de Deus habita em vocês?”
[13] “À coluna da direita deu o nome de Firme, e à da esquerda o nome de Forte” (Edição Pastoral). Na tradução de João Ferreira de Almeida, Sociedade Bíblica do Brasil (1994), consta: “… e chamou o nome da que estava à direita de Jaquim, e o nome da que estava à esquerda Boaz”.
[14] De algumas espécies extrai-se a goma arábica. Para a maçonaria, cujo significado de um simples ramo faz a diferença, é símbolo da imortalidade, da vida eterna e da pureza.
Bibliografia
A BÍBLIA SAGRADA. Edição Pastoral: São Paulo: Paulus, 1990; Tradução de João Ferreira de Almeida, São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 2004;
BARROS, Zilmar de Paula. A Maçonaria e o Livro Sagrado. Rio de Janeiro: Ed. Mandarino, n/d;
BLOG O Ponto Dentro do Círculo
BLOG do Pedro Juk
BLOG da Revista Bibliot3ca,
BOUCHER, Jules. A Simbólica Maçónica. São Paulo: Pensamento, 2015;
CARVALHO, Assis. A Descristianização da Maçonaria. Londrina: Ed. “A Trolha”, 1997;
CASTELLANI, José. A Maçonaria e a sua Herança Hebraica. Maringá: Ed. “A Trolha”, 1993;
CASTELLANI, José. O Rito Escocês Antigo e Aceito: História, Doutrina e Prática. Londrina: Ed. “A Trolha”, 1996;
CASTELLANI, José. A Maçonaria Moderna. São Paulo: A Gazeta Maçónica, 1987;
SALOMÃO, Lutfala. Igreja Católica e Maçonaria: as causas do conflito. Londrina, Ed. “A Trolha”, 1998;
VASCONCELLOS, Jairo Boy. A Fantástica História da Maçonaria. Belo Horizonte: Imprensa Oficial de Minas Gerais, 1999
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