Sempre que as pessoas estão juntas, elas costumam conversar: falam de acontecimentos, ideias, lembranças e, até algumas fofocas... Tudo que falam entre si sempre tem um sabor de memória, de lenda...
A gente nunca sabe da verdade... A turma ouve um conto e aumenta um ponto, como se diz... A memória não tem a ver com a realidade. O nosso cérebro monta, a partir de nossas mais diversas lembranças e experiências, uma nova versão dos fatos...
Ninguém faz isso por mal! Pelo contrário. É um mecanismo humano, demasiado humano... Parece até que nossa cachola gosta de construir poesias concretas com nossas memórias!
O ser humano é, essencialmente, um poeta involuntário. O que é a realidade senão uma poesia dos fatos?
Por isso prefiro as lendas. É que os fatos podem ser interpretados de maneiras tão diversas que acabam sendo utilizados para legitimar as mais profundas barbaridades.
Sempre que a gente precisa jogar pimenta nos olhos mais vulneráveis, a gente apresenta os chamados dados científicos, para justificar, e revestir de pretensa certeza, a dura injustiça.
Mas, não é a dúvida a essência da ciência? Se todos os cisnes são brancos, o que eu faço quando aparece um cisne negro? E um multicolorido?
A lenda e os símbolos, pelo contrário, evoluem conosco. Quando eu era menino, eu gostava das coisas de menino, agora eu cresci e abandonei as roupas da infância, dizem...
No fim, o entendimento daquilo que é real é muito mais fácil de ser entendido pelos símbolos. Esses, como todos nós, evoluem com a história.
Vamos resumir? Uma lenda nunca perde a validade. O dado, sim.
O ser humano, assim, percebe a realidade pela lente das lendas e símbolos. Ele enxerga não com os olhos, mas com a alma. A realidade é esse caleidoscópio colorido formado pelos diferentes entendimentos acerca de uma mesma lenda poética...
Eu costumo falar que a gente só entra no mundo dos fatos pelo caminho musical dos símbolos. Foi pelos símbolos musicais que Beethoven, por exemplo, questionou as relações de poder e mando da sociedade do século XIX...
Foi assim que ele imortalizou conceitos tão diáfanos quanto concretos, como os da fraternidade, amizade e Humanidade.
Contam que ele era vizinho, em Bonn, de uma menininha cega...
Sabe o mais interessante? Ele era extremamente temperamental, rude e mal-educado com todos. Seus vizinhos não suportavam seus hábitos ranzinzas, sua cara amarrada, sua arrogância e, dizem as más línguas, suas péssimas noções de higiene...
Mas com a pequena Débora, as coisas eram outras. Ele se tornava gentil, amistoso, e, até, ensaiava sorrisos... O pai de Débora, seu Jacobus, não suportava o casmurro Ludwig, mas, qual remédio?
A pequena o adorava, e se deliciava com os acordes daquele velho pianista. A verdade é que a cada nota musical tocada ela enxergava formas e cores muito além do que todos ali poderiam imaginar.
Ela enxergava, em meio a tantas inconstâncias emocionais, a beleza daquele senhor. Ela enxergava a pedra preciosa dentro do carvão, a rosa que desabrochava do lamaçal...
ENXERGAR...
Certa tarde ela pediu para titio Ludwig ajuda para perceber o luar... Ele se riu daquele capricho infantil...
Era aquela época do mês em que a lua vai se escondendo, até sumir na escuridão da noite, para retornar, bem vagarosamente, a nos iluminar com seus raios de prata...
Nesse tempo do ano, dona Rute, mãe de Débora, assava um pãozinho meio redondo, bem cheiroso e extremamente saboroso.
Foi envolto nesse aroma que Beethoven fechou os olhos, enxergou o luar, e começou a dedilhar sua Sonata ao Luar. Beethoven escutou e enxergou, não com os sentidos, mas com a alma, e entendeu a Beleza da Alteridade!
Quando, dias depois, a Infante Débora reapareceu, ela trazia um pedaço daquele pãozinho... E lá, com a sonata já escrita, ele a tocou pela primeira vez...
Naquele instante Débora enxergou o Luar...
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