Quando lemos nos textos da Inquisição o processo de John Coustos, há um fato que é realmente deslumbrante.
Trata-se da perfeita e total incredulidade dos juízes que interrogavam o Maçom J. Coustos, quando este afirmava a sua normalíssima crença em Deus, e não só a sua, mas também a de todos os outros réus do mesmo processo, que é como quem diz da mesma Loja. Portanto, já em 1730, os Maçons tinham grande fama, não exatamente de ateus mas sim de gente herética com credos e práticas nada ortodoxas. Vejamos onde é que tal fama poderia ter tido origem.
Se nós quisermos limitar ao exame dos documentos escritos relativos à história da Maçonaria na Idade Média, encontramos de imediato um documento da maior importância, o célebre decreto do Concílio Cismático de Avignon de 18 de Junho de 1326. Aí se verifica a condenação das Sociedades e “Confrarias” que reúnem nas Igrejas. Ora isto é perfeitamente esclarecedor no sentido em que revela uma evidente animosidade contra determinados agrupamentos cristãos, perfeitamente natural em tempos de confusão cismática. Para mais, essas confrarias de cristãos putativamente heréticos despertavam enormes suspeitas com as suas reuniões misteriosas e os sinais e símbolos “aliquibus” “exquisitus”. Um exame específico das relações entre a Igreja e diversas instituições, designadamente a Ordem Maçônica, revela que na realidade a situação de conflito com essas instituições se agudiza sempre que a unidade doutrinária da própria Igreja é posta em perigo.
No entanto, a melhor prova de que a Ordem Maçônica não pode viver fora do conceito mais clássico de Deus, encontra-se documentada pela mesma época no célebre Poema Regius. Segundo os paleógrafos do British Museum o manuscrito, com data provável de 1390, consta basicamente de um enunciado de regras pelas quais se deviam reger as comunidades de maçons. Esta parte normativa divide-se em 15 artigos correspondentes a uma espécie de regulamento e a 15 pontos que constituem no seu conjunto uma verdadeira Constituição e, que bem poderíamos chamar pontos de Regularidade. Vejamos o enunciado do primeiro ponto:
• Obrigação do amor a Deus, à Igreja e aos Irmãos. Ou seja, amai a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo.
É evidente que o primeiro texto das primeiras Constituições apresentado por Anderson à Grande Loja em 1722 repete grande parte dos pontos e das regras constantes do manuscrito Regius, em tempos comunicado às Lojas de Londres pelas Lojas de Edimburgo e Kilwarney. Daqui se pode deduzir que a célebre divisão da História da Maçonaria em períodos Operativo e Especulativo é altamente controversa. Na realidade o texto de Andersen de 1722 é inicialmente aceite por aqueles que mais tarde virão a ser chamados Antigos e que permanecerão afastados da Grande Loja Unida de Londres durante um século. Isto parece ser devido ao fato de um ano depois, isto é, em 1723, Anderson ter apresentado um novo texto das Constituições. Ora esta versão representava um profundo corte com velhas tradições constantes das “Old Charges” e do próprio Manuscrito Regius.
Por outro lado, a redação do texto referente às Obrigações do Maçom não era muito clara, em parte devido a situações de conflito com o Grão Mestre, o Duque de Wharton, que motivaram referências azedas a “ateus estúpidos ou libertinos irreligiosos. Nessa frase se têm apoiado as Maçonarias ditas Irregulares, para defenderem que Andersen admite a existência de “ateus inteligentes”. Portanto, o Deus da Constituição de 1723 é seria um Deus de Deísmo abrangente, contrariamente ao clássico Grande Arquiteto do Universo que é expressão de um verdadeiro Teísmo e não se presta a confusão alguma. Esse, o dos velhos textos, é o Deus da Bíblia, Deus dos Judeus, como dos Cristãos ou até mesmo dos Muçulmanos. A Bíblia é uma das Grandes Luzes da Maçonaria, preside aos seus trabalhos e compreende o Antigo e Novo Testamento. A Maçonaria Tradicional inspira- se tanto no Evangelho como na lei de Moisés ou dos Noaquitas.
O G∴ A∴ D∴ U∴ é um Deus que fala ao Homem, a Noé, aos Patriarcas, a Moisés, a Jesus e através deles a toda a Humanidade.
Notemos que nesta fase da História de Inglaterra acima de tudo importava agregar os maçons num esquema religioso aceitável por todos os homens de bem, ou seja, em torno de um Deus sobre o qual se pudessem entender pacificamente Católicos e Protestantes. As interpretações dadas pelas obediências irregulares ao texto pretensamente deísta são absolutamente abusivas. Com efeito a abrangência do texto de 1723 representa uma abertura mas sim em relação à entrada dos primeiros Judeus na Ordem Maçônica que se verifica justamente nessa altura. A imprecisão possível do texto de 1723 abrindo caminho a uma interpretação iluminista tipo Voltairiano ou mesmo Newtoniano está aliás amplamente condenada no mesmo texto, com as frases relativas aos ateus e aos libertinos. De resto, essa mesma imprecisão é desfeita pelo próprio Anderson em 1738. Passo a citar o texto do artigo Primeiro:
“(…)no que respeita a Deus e à Religião. um Maçom é obrigado, implicitamente a observar a Lei Moral. Se é um verdadeiro Noaquita e se compreende bem o ofício, não será nunca um ateu estúpido, nem um libertino irreligioso, nem agirá contra a sua própria consciência. Noutros tempos, os cristãos que viajavam estavam sujeitos a conformar-se com os costumes cristãos do país em que se encontravam, mas como a Maçonaria existirá em todas as Nações mesmo de religiões diversas, eles são agora obrigados a aderir àquela Religião sobre a qual todos os homens estão de acordo deixando a cada irmão as suas próprias opiniões quer dizer, devem ser homens de bem e leais, de honra e de probidade, quaisquer que sejam os nomes, religiões e confissões que os distingam. Porque todos estamos de acordo sobre os três Grandes Artigos de Noé” (fim de citação).
A referência bíblica da Aliança Noaquita, que não existe no texto de 1723, prova irrefutavelmente a vocação universalista da Ordem na fidelidade ao velho princípio na Fé de um Deus Revelado. O Noaquismo sem dúvida alguma é a revelação de Deus a Noé. Já dizia o Cavaleiro Ramsey que a Maçonaria era a expressão mais abrangente do monoteísmo. Naturalmente esta concepção ecuménica, extensiva aos próprios judeus, volta a despertar profundas suspeitas de heresia, na medida em que é de fato, naquela época, uma ideia extremamente arrojada.
Mas enfim, muito mais haveria a dizer. A própria teoria da Via Substituída, tão decisivamente analisada por Jean Baylot, enferma dum erro gravíssimo.
O conceito de Deus incluído dentro dum Movimento Religioso não pode ser nunca alvo de uma concepção pessoal. A palavra religião deriva do latim “religare”, e como o seu nome indica une indivíduos em torno de uma ideia sagrada. Um conceito individual de Deus só é concebível portanto fora de um contexto coletivo, ou seja não há religiões de uso individual e exclusivo. Ora e voltemos ao próprio Anderson de 1723. O Maçom não poder ser nunca um ateu estúpido ou um libertino irreligioso. Portanto, jamais Andersen, aliás presbítero bem ortodoxo, se poderia estar referindo a um Deus pessoal tipo “Princípio Criador Universal”, completamente alheio às religiões “oficiais” da época.
Verdade seja dita que os tempos atuais dificultam para muitos uma tomada de posição clara neste aspecto. Diz Mircea Eliade que a única criação do homem moderno no campo das religiões foi a destruição sistemática do sagrado ou, quando tal não foi possível, a sua completa camuflagem. E esta iconoclastia foi de tal forma exaltada por auras mediáticas de radicalismo super intelectual que a simples confissão da Fé em Deus começou a exigir alguma coragem aos pobres de espírito que a quisessem afirmar. Mais ainda, dentro do tal esquema de camuflagem a que alude Eliade muitos homens há que, afastados das práticas tradicionais dos cultos por todo o imenso esforço do “fundamentalismo ateu”, escondem envergonhadamente a sua crença em Deus, chamando-lhe eufemisticamente nomes tão pomposos e vazios como o célebre Princípio Criador Universal e outras sandices que tais.
Recordo a propósito uma deliciosa intervenção num programa televisivo do Prof. Fernando C. Rodrigues quando entrevistado pela jornalista Teresa Guilherme. Perguntou ela ao Prof. C. Rodrigues se o satélite português iria descobrir muita coisa e, obteve em troca esta resposta lapidar; “Muita não direi, mas é natural que descubra mais algumas zonas da nossa ignorância”. E a propósito contou que a sua sobrinha havia uns dias tinha dito à mãe que o seu colégio projetava um piquenique para o dia seguinte no Jardim Zoológico. E logo a mãe lhe disse que não lhe parecia que tal fosse possível porquanto o boletim meteorológico previa muita chuva para o dia seguinte. A pequena quis saber porque é que eles diziam isso e a mãe pacientemente explicou que pelas fotografias do satélite se observava que havia uma baixa de pressão situada a nordeste dos Açores que se dirigia para a Península Ibérica com uma forte componente de ar marítimo e portanto iria chover. E porque é que essa depressão vem para cá? perguntou a pequena. E a mãe explicou que a diferença de pressão atmosférica ia impelir para cá as nuvens. E a pequena perguntou mais uma vez, mas porque é que a pressão atmosférica está assim? E a mãe respondeu que nessa altura do ano as pressões mais altas vão para o hemisfério Sul. E a pequena voltou a perguntar porque é as pressões mais altas vão para o Hemisfério Sul? Foi então que a mãe lhe deu a mais científica de todas as respostas: Olha, filha, porque Deus Nosso Senhor quer que chova amanhã…
Mas, e porque falamos de M. Eliade é talvez interessante analisarmos aquele que é um argumento tão definitivo que francamente muitas vezes não me apetece esgrimir com ele, porquanto para mim na realidade o assunto se esgota na própria definição de Maçonarias.
Ora, vejamos e deem-lhe por favor as voltas que quiserem: A Maçonaria é uma Sociedade Iniciática, ponto parágrafo e mais que final.
Pois bem, o iniciatismo não tem possibilidade alguma de existência fora de um conceito Sagrado. Admitir o contrário deste verdadeiro postulado científico só pode revelar ou uma triste ignorância ou uma degradação profunda de atos supostamente iniciáticos.
Muito mais havia a dizer neste aspecto. Na realidade, realçamos com frequência o Iniciatismo da Ordem Maçônica, orgulhamo-nos que isso assim seja, cultivamos muito cuidadosamente os rituais de Iniciação mas esquecemo-nos daquilo que eles têm implícito. Sem sombra de dúvida, obedecemos a todos os padrões e regras fundamentais dos ritos iniciáticos, tal como estão imutavelmente definidas desde os tempos clássicos de Van Gennep:
• A privacidade dos ritos.
• O seu significado especial para um grupo de indivíduos.
• A sua apresentação de forma teatralizada.
• A sua realização sobre a forma de experiência participativa.
Tudo isto nos define como uma Sociedade Iniciática, a última que persiste no Mundo Ocidental. Retire-se lhe o conceito Sagrado, e o que é que resta? Uma paródia, uma cegada, uma brincadeira de crianças crescidas, diria mesmo uma espécie de festa de recepção aos caloiros… Aqueles que conhecem as iniciações das Maçonarias Irregulares, sabem bem como elas tem tendência a transformar-se em comédias mais ou menos agarotadas, tentação essa que às vezes infelizmente também se verifica por errada tradição nas Maçonarias Regulares. Refiro-me explicitamente a alguns comportamentos cuja ligeireza é por vezes lamentável e que traduz apenas uma fraca convicção do sentido sagrado da cerimônia, quando não a sua total incompreensão.
É que não basta afirmar num papel a condição de crente para se poder ser Maçon. É preciso, sim, ter condições para cumprir o primeiro e mais fundamental dos Landmarks e acreditar verdadeiramente na existência de Deus. E eu confio inteiramente nos meus Irmãos. Sei que hão de vencer as forças sociais que modernamente obstaculizam a fruição dos valores espirituais e hão de prosseguir com a valorização do nosso indestrutível património de iniciatismo, em Espaço e Tempo Sagrados, no Templo que dia a dia todos frequentamos.
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