Jacareí, como toda cidade brasileira, também tem suas carências, suas dificuldades e suas feiuras... Mas, igual a todas as outras, tem suas belezas, suas alegrias, sua poesia cotidiana. E de uma coisa ela pode se orgulhar!
A localização é encantadora: Jacareí, a Atenas Paulista e Cabrocha da Dutra... Estamos perto da praia, da montanha, do aeroporto, de São Paulo, do Rio e de Minas. Jacareí é um tipo de encruzilhada sudestina...
A fornalha carioca também é uma rosa cheia de espinhos... Purgatório da beleza e do caos, cantaria Fernanda Abreu... Vinícius, cheio de saudades, lembraria dos sons do piano na rua Nascimento Silva, 107, e de tudo o que já não era mais.
Mas a verdade é que o Criador também gosta de algum lirismo... Ele escreveu a mais bela poesia em forma de cidade: Rio de Janeiro.
Uma prima minha morou lá por vários anos. Ela também tem um nome poético, desses que parece um pouco a luz do luar. No fundo, se a gente pensar bem, todo nome é lírico! Toda gente é bela! A humanidade é poeta!
Mas voltando, antes que eu perca o rumo da prosa ainda mais... A casa dela ficava em Santa Tereza, bairro que une o samba à Mata Atlântica. Era um antigo convento, transformado em morada. Verde, música e lar...
E que bela decoradora, além de tantas outras coisas boas, ela é! Ela pega o objeto mais comum, normal, corriqueiro, e coloca num lugar que o enche de significado e graça. Ela taca uma moldura no ordinário e constrói o extraordinário! Enfeita a casa e constrói um lar!
Sabe quem enxerga a beleza no comum?
Acho até que isso já vem de berço. É que minha tia, a mãe dela, é desse mesmo jeitinho... Meu tio, o pai dela, que já caminha pelas luzes do luar, também...
Eu pousei naquele encanto da Beleza uma vez. Era uma reunião de trabalho que eu teria com meu amigo João, e com um tal de Zé, num boteco de Copacabana. Trabalho, boteco e domingo não rimam...
Não existe trabalho ruim... O ruim é ter que trabalhar, resmungava o seu Madruga.
Mas fazer o que, né? O João era um daqueles monstros sagrados que me tinha como aprendiz. Ele queria desbastar um pouco meu pedregulho interno, fazer minha poética interna se derramar no texto...
Era domingo que ele queria? Era boteco? Era Copacabana? Eu nem questionei... Eu só fui... Mesmo sem ter nem roupa, fui!
No caminho fomos passando pelo bonde, pelas árvores, pela passarada, e por vários botecos em que a gente carioca cantava, bebia e torcia. Domingo no boteco é só samba e futebol, gostava de dizer o João.
É a poesia do povo! Um pingo de igualdade social naquele oceano de iniquidade! Como é belo o feio Rio! Como é feio o belo Rio!
Naquela mesma mesinha de latão, já na calçada, estava, como sempre, o João. Óculos, bigode, a careca típica da meia idade já avançando, uma camisa azul aberta, calção e chinelas meio vermelhos... Um copo americano de cerveja pela metade...
Na cambaleante cadeira do lado estava o Zé. Um português já idoso, também de óculos, mas sem bigode, de calça cinza, camisa branca, um impressionante pulôver preto que gritava de tanto sufocar naquele abafamento tropical...
Os europeus nunca entenderão a civilização do Sol e da Beleza!
Aproximei-me, puxei uma cadeira de lado e, tentando me equilibrar, me sentei. A mesinha, de um latão mambembe, em cima daquele chão em que o mosaico português brigava com as raízes dos flamboyants, parecia dançar um jongo ancestral...
João deu uma risada e falou:
“Se achegue no meu escritório! Vou pedir um copo para você também!”, com aquele sotaque, doce e arrastado como o chocolate de Itaparica.
Eu ainda sem acreditar, encarei bem o Zé... Como eu poderia estar ali? Um “nada”, ao lado de dois “tudo”. Sabe o João Batista, que repetia não servir nem para amarrar as sandálias de seu primo? Era bem assim que eu me sentia.
Mas, a vida quer da gente é coragem... Fui direto ao ponto:
“Vamos comer o que?”
“Sardinhas assadas e torradas com manteiga e alho”, foi direto ao ponto o Zé.
O João parecia concordar, já que ficou calado enquanto olhava para mais uma de tantas sereias que passavam...
E o Zé continuou: “a gente tem de comer o que o povo come! A gente escreve como o povo fala. Se a literatura não dissolve as correias que prendem nossa gente, ela não serve para nada!”.
O João, batucando a mesa e admirando as ondas no copo de cerveja, quis dar seu pitaco também: “Isso é verdade pura! No ‘Viva o Povo Brasileiro’, o personagem principal, o mais importante, é o povo. Ele que tem costumes, tradições e trabalho. É ele que cultiva a língua na fala. É ele que escreve na labuta cotidiana. O Povo sabe!”
Eu queria ficar rouco de tanto ouvir! Só conseguimos escutar quando abrimos as alas para o silêncio e para a reflexão...
Zé interrompeu: “Acho que escrever é um ato de esforço e disciplina. Todo dia sento e escrevo, e as palavras vão me guiando por caminhos de luz e sombras que eu nunca imaginava poder pensar... Uma vez, eu tava escrevendo ‘Levantando do Chão’... Já tinha escrito umas 20 páginas quando percebi que para falar eu precisava ser entendido. Foi aí que fui buscar a língua da gente! A linguagem popular!”
“Mas a linguagem popular é tinhosa! Ela é traiçoeira e rápida igual uma caninana!”, falou por cima o João... “Uma vez eu tava tomando uma cachaça de rolha lá na praia, contente, sossegado. Chegou um consagrado e ligou o rádio bem alto. Eu até gostei da música, mas naquela hora eu queria escutar a melodia do vento... A falta de educação também é parte da língua do povo!”.
“Aliás, vamos de caninha?”, perguntou. Na verdade, ele já sabia da resposta... É que ele nem deu tempo e já foi chamando o garçom: “Meu consagrado! 3 da boa, por favor!”, e com a mão fez o gesto, tão verde-amarelo, da cachaça.
O Zé, com uma cara de poucos amigos, falou: “Falta de educação igual a sua, João, que já atropelou meu discurso! Há uns dias Pilar e eu nos banhávamos nos mares de Cabo Frio. Era muito gostoso. Um cardume colorido se acercava de nós, e, aos poucos, beliscava nossas pernas. Chegava a fazer cosquinha... Quando eu ia pegar um deles, o cardume fugia. Estavam ali, encostando em mim, mas eu não conseguia tocar!
A linguagem popular é igual esse cardume! Se a gente força demais, fica parecendo um bobo da corte escrevendo. Se a gente força de menos, continuamos presos nas masmorras da incompreensão.
Pegar o idioma popular é uma arte! É pra poucos!”
Nesse momento apareceu o garçom. Na bandeja, as sardinhas tostadas, uma porção de pães assados, mais uma cerveja e uma garrafa de pinga. Era a da casa, feita artesanalmente, lá em Paraty, pela família do dono.
“Essa é das boas!”, celebrou o João! “Qual seu nome, por gentileza, meu amigo?”
“Johnny. Mas você já me conhece. Eu te atendo sempre aqui, seu João.”
“Eu sei. É que eu queria te apresentar para os meus amigos, o paulistinha André e o portuga Zé.”
“Olá pessoal! Qualquer coisa, estamos às ordens!”
O Zé sorriu amarelado: “Vocês do lado de cá tem cada costume! Uma sonoridade lírica e linda ‘JOÃO’ que não se acha em lugar nenhum do mundo... E vocês insistem em emporcalhá-la com esse lixo estrangeiro... “Johnny, onde já se viu? Esse mundo se perde!”
João, rindo muito, completou: “Sonoridade ainda mais linda aqui no Brasil, em que as vogais parecem ter se espreguiçado e deitado numa esteira de vime... JOÃO! Só esse nome já dá música... João...”
“É... Olha como a língua popular é um camaleão! João é muito mais linda! É de um lirismo lusitano gigantesco... Mas o povo prefere o lixo inglês! Johnny! São os peixes daquele cardume... Tão à mão, tão intocáveis!”, suspirou Zé, como Don Quixote que adoraria vencer os gigantes mas sabe que eles não passam de moinhos de vento...
“Pindura aí, Johnny! Pago na próxima! Vou levar meus amigos ali para ver o Sol se deitar em Copacabana!”
Levantamos os três e fomos pela areia maravilhados pelas cores alaranjadas que iam desabando sobre o mar... “As artes nascem de quem consegue enxergar esse espetáculo! Tentem escutar o pôr do Sol... Será que Beethoven era brasileiro?” riu demais o Zé!
“Nossa próxima reunião será em Itapoã!”, gritou o João.
A gente riu demais...
Até hoje, quando me perguntam dessa reunião de trabalho, dou uma de Chicó, o amigo de João Grilo: “Não sei... Só sei que foi assim...”.
Será?
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