agosto 09, 2024

O CONTO DA LATIF - Jorge Bucay



Latif era o mendigo mais pobre da aldeia.

Todas as noites dormia no saguão de uma casa diferente, em frente à praça central da cidade.

Todos os dias se deitava debaixo de uma árvore diferente, com a mão estendida e o olhar perdido em seus pensamentos.

Todas as tardes comia da esmola ou das doações de alguém caridoso. 

No entanto, apesar da sua aparência e da forma como passou os seus dias, Latif era considerado por todos, o homem mais sábio do povo, talvez não tanto pela sua inteligência, mas por tudo o que tinha vivido, por sua experiência de vida.

Numa manhã ensolarada o próprio rei apareceu na praça. Rodeado de guardas, andava entre as barracas de frutas e bugigangas procurando por nada.

Rindo dos mercadores e dos compradores, quase tropeçou no Latif, que dormia na sombra de uma arvore.

Alguém lhe disse que estava diante do mais pobre dos seus súbditos, mas também diante de um dos homens mais respeitados pela sua sabedoria.

O rei, engraçado, aproximou-se do mendigo e disse-lhe:

- Se você me responder a uma pergunta eu lhe dou esta moeda de ouro.

Latif olhou para ele, quase depreciativamente, e disse-lhe: = Podes ficar com a tua moeda, para que eu a quereria? Qual é a sua pergunta?

E o rei sentiu-se desafiado pela resposta e, em vez de uma pergunta banal, despachou-se com uma questão que há dias o angustiava e que não conseguia resolver. Um problema de bens e recursos que seus analistas não tinham conseguido resolver.

A resposta de Latif foi justa e criativa.

O rei ficou surpreso, deixou sua moeda aos pés do mendigo e seguiu seu caminho pelo mercado meditando o que aconteceu.

No dia seguinte, o rei voltou a aparecer no mercado.

Já não andava entre os mercadores, foi direto para onde Latif descansava, desta vez sob uma oliveira. Mais uma vez o rei fez uma pergunta e Latif respondeu-a rápida e sabiamente.

O soberano voltou a ficar surpreso com tanta lucidez. Com humildade tirou as sandálias e sentou no chão em frente ao Latif.

Latif, eu preciso de você” - disse-lhe. - Estou sobrecarregado pelas decisões que como rei devo tomar. Não quero prejudicar o meu povo nem ser um mau governante. Peço-te que venhas ao palácio e sejas meu conselheiro.

- Prometo que nada te faltará, que serás respeitado e que poderás partir quando quiseres... Por favor.

Por compaixão, serviço ou surpresa, o caso é que Latif, depois de pensar alguns minutos, aceitou a proposta do rei.

Nessa mesma tarde Latif chegou ao palácio, onde imediatamente lhe foi atribuído um luxuoso quarto a poucos 200 metros do quarto real. No quarto, uma banheira de aromas e água morna o esperava.

Nas semanas seguintes, as consultas do rei tornaram-se habituais. Todos os dias, de manhã e de tarde, o monarca mandava chamar seu novo conselheiro para consultar sobre os problemas do reino, sobre sua própria vida ou sobre suas dúvidas espirituais.

Latif respondia sempre com clareza e precisão.

O recém-chegado tornou-se o interlocutor favorito do rei.

Três meses após a sua estadia, deixou de haver medida, decisão ou decisão que o monarca não consultasse o seu precioso conselheiro. Obviamente isso desencadeou o ciúme de todos os cortesãos que viam no mendigo-consultor uma ameaça à sua própria influência e um prejuízo aos seus interesses materiais.

Um dia todos os outros conselheiros pediram uma audiência ao rei. Muito circunspectos e gravemente disseram-lhe:

 - Seu amigo Latif, como você o chama, está conspirando para te derrubar.

-  Não pode ser, não acredito” - disse o rei.

-  Você pode confirmar com seus próprios olhos - disseram todos.

- Todas as tardes por volta das cinco, Latif escapa do palácio para a ala sul e em um quarto escondido se reúne às escondidas, não sabemos com quem.

- Perguntamos-lhe onde ia uma dessas tardes e ele respondeu com evasão. Essa atitude acabou de nos alertar sobre sua conspiração.

O rei sentiu-se desapontado e magoado.

Tinha de confirmar essas versões. Nessa tarde, às cinco, estava escondido na curva de uma escada. De lá, viu Latif chegar à porta, olhar para os lados e com a chave pendurada no pescoço, abria a porta de madeira e escapava furtivamente para dentro do quarto.

- Vossa Majestade viu?  - gritaram os cortesãos.

Seguido de sua guarda pessoal o monarca bateu na porta.

- Quem é?  - disse Latif de dentro.

- Sou eu, o rei - disse o soberano... - abra a porta.

Latif abriu a porta.

Não havia ninguém além do Latif. Nenhuma porta, nenhuma janela, nenhuma porta secreta, nenhuma mobília que permitisse esconder alguém.

Só havia no chão um prato de madeira desgastado, num canto uma vara de andador e no centro da peça uma túnica roída pendurada por um gancho no teto.

- Você está conspirando contra mim, Latif? - perguntou o rei.

- Como pode pensar isso, majestade - respondeu Latif -  Por que eu faria isso? 

- Pois você vem aqui todas as tardes em segredo. O que você procura se não se vê com ninguém? Por que você vem para este lugar às escondidas?

Latif sorriu e aproximou-se da túnica quebrada que estava pendurada do telhado.

Ele acariciou-a e disse ao rei:  - Há seis meses quando cheguei ao seu castelo, tudo o que tinha era esta túnica, este prato e esta vara de madeira - disse Latif.

- Agora me sinto tão confortável com a roupa que visto, é tão confortável a cama em que durmo, é tão lisonjeador o respeito com que me tratas e tão fascinante o poder que trás o meu lugar ao teu lado... que venho todos os dias para ter certeza de uma coisa... nunca esquecer QUEM EU SOU E DE ONDE EU VIM.


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