À medida em que vamos pesquisando informações sobre povos que viveram em diversas épocas e lugares, nos deparamos com situações surpreendentes.
Nesse afã, tomei conhecimento de um povo indígena que vive num trecho das terras cortadas pelo Rio Marmelos e quase toda a extensão do Rio Maici, no município de Humaitá, no Amazonas, cujas características e modo de vida têm uma singularidade interessante, desconcertando linguistas, antropólogos e cientistas: os pirahã, que desafiam tudo o que se sabe sobre linguagem e cultura.
Isolados do resto do mundo, por gerações conseguiram manter uma cultura e um idioma que contrariam algumas tradições da humanidade. Esse modo de vida obedece a uma filosofia simples: vivem intensamente o presente, sem necessidade de se preocupar com o futuro ou refletir sobre o passado. Na sua linguagem não existem tempos verbais que marquem o passado ou o futuro. Para eles a vida é o que acontece agora, o que se pode ver e experimentar no momento.
Outro aspecto intrigante é que em seu idioma não existem números. Eles usam termos imprecisos como pouco ou muito, o que levou alguns pesquisadores a repensar a importância da linguagem numérica na vida cotidiana – mas cá entre nós, o que seria da arquitetura, engenharia, ciência e tecnologia sem a matemática? Além disso, eles têm outra característica marcante: não cultuam nenhuma forma de religião, nem mitos que passem de geração em geração. Eles falam apenas sobre o que enxergam diretamente, o que impede qualquer narrativa baseada em experiências alheias ou eventos de um passado distante.
Seu estilo de vida também é notavelmente distinto, vivem da caça, da pesca e da coleta. Não acumulam alimento nem possuem bens materiais além do necessário para seu dia a dia. Essa conexão direta com a natureza reforça o enfoque no presente e na auto suficiência.
Os pirahã têm resistido à influência externa durante séculos. Alguns missionários tentaram convertê-los ao cristianismo mas não conseguiram. Eles rechaçam qualquer tipo de religião. Também resistem ao aprendizado do português ou de qualquer outro idioma, mantendo com firmeza sua própria língua e cultura. Apesar de tentativas diversas de colonizá-los, continuam vivendo como sempre fizeram, em estado de harmonia com seu entorno e com uma visão de mundo muito peculiar.
Um episódio marcante foi protagonizado por Daniel Everett, um missionário cristão do Instituto de Linguística Summer (SIL), que nos anos 70 tentou evangelizá-los. Ele pretendia decifrar a língua dos pirahã para convertê-los ao cristianismo. A convivência com esse grupo indígena levou Everett a questionar sua própria fé, abandonar o trabalho de missionário e virar ateu. Ou seja, é quase como se o catequizador é que fosse o catequizado.
Os resultados da pesquisa de Everett, hoje reitor do Centro de Artes e Ciências da Universidade de Bentley, em Massachusetts (EUA), ganharam o mundo há cerca de dez anos, quando ele usou a língua pirahã para questionar os preceitos da gramática universal, que dizem que as estruturas básicas da linguagem já nascem com o ser humano sem ser aprendidas. Numa entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, ele declarou que no lugar do conceito da gramática universal, podemos dizer que a linguagem é o resultado de “uma interação complexa de fatores na qual a cultura exerce um papel preponderante na estruturação do modo como falamos e das coisas sobre as quais falamos.” Assim, ele completa, “a linguagem é possível graças a uma série de características cognitivas e físicas que são singulares dos humanos, mas nenhuma das quais pertence exclusivamente à linguagem. Quando elas se juntam, possibilitam a linguagem. Mas o elemento fundamental a partir do qual a linguagem é construída é a comunidade”.
Além disso, ele conta que os indígenas perderam o interesse em Jesus Cristo quando descobriram que Everett nunca o viu de fato. Seu contato intenso com esse tipo de pensamento acabou transformando Everett em ateu. Sem sucesso na evangelização, o ex-missionário escreveu um livro em que descreve sua experiência com a cultura pirahã.
Os pirahãs concebem o tempo como uma alternância entre duas estações bem marcadas, definidas pela quantidade de água que cada uma apresenta: piaiisi (época da seca) e piaisai (época da chuva). Segundo o Instituto Socio Ambiental, ONG que reúne dados sobre os indígenas brasileiros, em 2014 a população pirahã era de aproximadamente 600 pessoas.
Apaitsiiso ("aquilo que sai da cabeça") é como os pirahãs se referem à sua língua, o pirarrã, classificada como pertencente à família linguística Mura.
Pelo fato de não acreditarem em nada que eles não possam ver, sentir ou que não possa ser provado ou presenciado, os pirahã não creem em espírito supremo ou divindade criadora, mas reconhecem espíritos menores que às vezes podem surgir e tomar a forma de coisas no ambiente (de acordo com alguma experiência pessoal concreta), e que a terra e o céu sempre existiram, ninguém os criou.
Enfim, cada povo com seu uso, cada roca com seu fuso.
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