Shakespeare, possivelmente um dos maiores inquiridores da condição humana sob a ótica moderna, emerge, em sua obra, como uma força intelectual que transcende a temporalidade. Assim como Cervantes problematiza a loucura como um contraponto paradoxalmente saudável à razão em Dom Quixote, Shakespeare, de modo singular, em sua tragédia máxima, Hamlet, propõe uma reflexão sobre o excesso da razão, que, por sua vez, subjuga o indivíduo à inércia e à covardia.
A narrativa de Hamlet apresenta o drama do príncipe da Dinamarca, cuja vida é irremediavelmente alterada pela morte abrupta e misteriosa de seu pai, o rei. Incapaz de aceitar as circunstâncias que envolvem esse acontecimento, Hamlet é confrontado pela aparição espectral de seu genitor, que revela a verdadeira causa de sua morte: um regicídio perpetrado pelo próprio irmão, agora usurpador do trono e marido da rainha, mãe de Hamlet.
De posse dessa verdade sombria, Hamlet ingressa em um processo de dolorosa constatação. A justiça clama por ação, o fantasma do pai exige vingança, mas o jovem príncipe se encontra paralisado diante do imperativo de agir. O vil ato que levou o tio ao poder não apenas subverteu a ordem política, mas instaurou uma dissonância ética e moral no âmago do reino. “Há algo de podre no reino da Dinamarca” — e tal podridão não se restringe ao trono, mas reverbera na alma humana e na ordem cósmica.
Essa dimensão ética ganha uma ressonância contemporânea, pois, assim como na Dinamarca de Hamlet, o desequilíbrio moral do ser humano moderno também ecoa em desajustes naturais. Vivemos em uma época em que as ações humanas – ou a ausência de ações necessárias – ameaçam a própria sobrevivência do planeta. O dilema de Hamlet, portanto, adquire contornos proféticos: sua hesitação em agir ressoa na inércia coletiva que observamos diante das crises ambientais, sociais e éticas que nos cercam.
O cerne de Hamlet, no entanto, não reside apenas no contexto político ou nas demandas de justiça, mas, sobretudo, na profundidade psicológica e ética do protagonista. Enquanto príncipe, Hamlet carrega o fardo de restaurar a ordem no reino; enquanto homem, ele se vê enredado em sua própria introspecção. “Maldita a sina que me fez nascer em tempos tão desconcertados; cabe a mim consertá-los.” Esta lamentação de Hamlet, impregnada de melancolia, é uma reflexão profundamente humana e universal, que nos leva a questionar: reclamamos dos tempos em que vivemos, mas reconhecemos que somos, em última instância, responsáveis por eles?
É nesse contexto que irrompe o célebre monólogo “Ser ou não ser, eis a questão”, uma das passagens mais emblemáticas da literatura ocidental. Essa frase, que habita o imaginário coletivo, transcende a dimensão teatral e emerge como uma meditação sobre o dilema entre o pensar e o agir. Ao longo da peça, percebemos que Shakespeare estabelece uma relação intrínseca entre “ser” e “fazer”: o ser autêntico manifesta-se no agir. Para agir, porém, é necessário pensar; mas o excesso de pensamento, como o próprio Hamlet conclui, transforma a coragem em covardia.
Hamlet, ao procrastinar a vingança, sucumbe às armadilhas do excesso de razão, tornando-se vítima de suas próprias paixões e omissões. Sua hesitação em cumprir o dever no momento oportuno conduz a atos trágicos e desnecessários, que resultam na morte de inocentes e no agravamento do caos. Shakespeare parece advertir: quando deixamos de agir no momento devido, abrimos espaço para ações precipitadas e destrutivas. Assim, ao negligenciar o que deve ser feito, perdemos não apenas o momento, mas a própria essência do ser.
No coração dessa tragédia está uma mensagem ética fundamental: somos aquilo que fazemos, não o que pensamos. Nesse ponto, Shakespeare parece dialogar criticamente com o pensamento emergente de sua época, especialmente com Descartes, que viria a afirmar: “Penso, logo existo”. Shakespeare, por meio de Hamlet, apresenta um contraponto: “Não basta pensar; é preciso agir.” A essência da humanidade reside, mais do que em suas ideias, em seus atos. Em última análise, Hamlet nos oferece uma meditação atemporal sobre o imperativo ético do agir, sobre a conexão indissolúvel entre o ser e o fazer, e sobre a responsabilidade que cada um de nós carrega na construção, ou destruição, do mundo que habitamos.
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