fevereiro 13, 2025

A MAÇONARIA E O SAGRADO FEMININO - João Anatalino Rodrigues



A expressão “Filhos da Viúva” é bastante antiga e parece estar conectada com antigos cultos matriarcais, no qual se cultuava um princípio feminino, ligado principalmente á questão da fertilidade da terra. Ela aparece, originalmente, no antigo Egipto, onde os iniciados nos Mistérios de Isis e Osíris recebiam esse apelido. É sabido que os antigos rituais praticados nos templos egípcios, dedicados á Isis, tinham um duplo propósito: de um lado honrar a deusa, para que esta promovesse a fertilidade da terra, fazendo com que o país obtivesse boas colheitas, e de outro lado despertar nos praticantes desse ritual uma espécie de iluminação espiritual, semelhante a um renascimento noutro estado de consciência.

Com o tempo este ritual adquiriu uma conotação política e social, pois os chamados “iniciados” nesses Mistérios passaram a constituir uma classe de elite na sociedade egípcia, concentradora do “poder que vinha dos deuses”. Esta mesma conformação pode ser encontrada entre outros povos antigos que praticavam ritos semelhantes. Em especial as variantes gregas dos Mistérios de Elêusis e os Mistérios da Samotrácia, nos quais se buscava honrar esse “princípio feminino” que identifica a fertilidade, tanto em relação á terra, quanto á própria vida humana.

Isis, como sabe, ficou viúva dado o assassinato do seu irmão e consorte, Osíris. Daí os iniciados nos Mistérios de Isis e Osíris serem chamados de “Filhos da Viúva.” Ela simbolizava o “sagrado feminino” em toda a sua integridade.

OS TEMPLÁRIOS E O “SAGRADO FEMININO”

Este título também foi aplicado aos cavaleiros da Ordem do Templo, face às indicações, bastante prováveis, de que eles praticassem algum tipo de ritual consagrado ao chamado “princípio feminino”. Esse princípio foi identificado em símbolos que reproduziam o crescente lunar, representando a deusa egípcia Isis. Este culto, supostamente praticado em capítulos avançados da ritualística templária, era simbolizado pelo desenho de uma lua crescente, com estrelas nas duas pontas, e em cima um sol chamado de Abraxas (variante gnóstica para o deus Osíris). Essa iconografia simbolizava o processo segundo o qual a fertilidade da terra era promovida, e também representava a elevação da própria alma, conforme representada nos Mistérios Egípcios e em cultos gnósticos adoptados pelos Templários.

Esta hipótese deriva do fato de os senescais de Filipe, o Belo, terem encontrado entre os pertences templários sequestrados na preceptoria de Paris uma cabeça de prata, que continha, dentro dela, ossos de uma cabeça menor, supostamente de uma mulher, envolvida em linho e púrpura. Essa cabeça tinha um título escrito em baixo que dizia: Caput LVIII e um signo misterioso que foi interpretado como sendo o signo da virgem (Virgo). Além disto, sabe-se que o próprio São Bernardo de Clervaux, inspirador e organizador da Ordem do Templo, era um devoto da Virgem. Consta que ele a cultuava de uma forma mística e bastante heterodoxa. Segundo uma tradição muito divulgada na Idade Média, ele teria sido alimentado pelo leite que brotara dos seios da estátua de uma Virgem Negra.

Que existia um culto à Virgem entre os Templários (a viúva Maria, mãe de Jesus, ou Maria Madalena, suposta esposa de Jesus, ou a própria deusa Ísis) é inegável, porquanto as últimas palavras de Tiago de Molay, grão-mestre do Templo, antes de ser amarrado no poste para ser queimado na fogueira, foram um pedido ao carrasco para fazer uma oração á Virgem. Ressalte-se que o próprio cristianismo não ficou imune á influência do “sagrado feminino”. A Virgem Maria, nas mais variadas tradições marianas, é cultuada como um símbolo lunar. Muitas tradições relativas a esse culto sobreviveram nas tradições da sociedade ocidental. A lua de mel como símbolo do himeneu (a entrega da virgindade da noiva ao seu marido), a mística da lua cheia, como fase propícia para mudanças de personalidade e início de empreendimentos, a influência lunar na sexualidade das mulheres etc., são todos exemplos conectados com o culto ao sagrado feminino.

O “SAGRADO FEMININO” NA LITERATURA

E revelador também o fato de os próprios franceses, como povo, já cultuarem, de longo tempo, o “sagrado feminino”. Há registos de que nas proximidades da atual igreja de Saint-Germain-des-Prés, a mais antiga da capital francesa, os primitivos habitantes da cidade (então chamado de Lutécia), tinham construído um templo dedicado a Isis. Por isso os moradores do lugar eram conhecidos pelos romanos como Para-Isis, ou seja “cultores de Isis”, que resultou no nome “pcirísios”, pelo qual os habitantes da cidade ficaram conhecidos. Deriva desse antigo culto a tradição dos franceses de honrar a Notre Dame, que mais que uma reminiscência á Maria, mãe de Jesus, é uma tradição que já vem do tempo dos druidas, que cultuavam a Mãe Terra e a ela prestavam culto. Do termo (Para-Ísis, parísios) teria vindo o nome Paris.

O culto à mulher, como símbolo do sagrado feminino, projetou-se inclusive na literatura medieval e tornou-se um dos principais géneros literários da época. É revelador que este tipo de literatura tenha nascido justamente na Provença, ou seja, no chamado território do Languedoc. A poesia provençal parece ter tido origem nas tradições populares cantadas em prosa e versos por artistas ambulantes, que iam de cidade em cidade e se apresentavam em feiras e recitais organizados por nobres senhores, para distrair convidados nos seus serões. Desenvolveu-se, nesse tipo de manifestação artística, uma forma de lirismo quase religioso, no qual o amor do cavaleiro pela sua dama afirmava-se como um culto, quase uma religião. O trovador, na Corte e na literatura, comportava-se em relação à sua dama como se fosse um vassalo em relação ao seu senhor, ao qual devia homenagem, fidelidade e socorro em caso de perigo, combatendo e morrendo por ela, se necessário. Não se tratava de uma relação sentimental de envolvimento físico, mas sim de uma relação de carácter espiritual, na qual a dama escolhida era uma espécie de ídolo, um objeto de adoração, onde o próprio nome da amada devia ser mantido em segredo. A este ideal romântico correspondia um tipo idealizado de mulher que mais se assemelhava a uma deusa, uma ninfa, uma fada, algo muito além de uma criatura de carne e osso. A Laura dos poemas de Petrarca, a Beatriz de Dante, a Isolda de Tristão, a Guinevere dos contos da Távola Redonda, a caricata Dulcineia do Dom Quixote, são exemplos dessa simbologia do “sagrado feminino”, que a literatura provençal imortalizou. Registe-se que o declínio da literatura provençal ocorreu principalmente em razão da repressão movida pela Igreja de Roma contra os cátaros, que acabou envolvendo todo o povo do Languedoc e arruinou um grande número de nobres dessa região. Ressalte-se que tanto a literatura provençal, que idealizava o valente cavaleiro e o seu amor platónico, quanto a tradição cavalheiresca de honrar o “sagrado feminino” nunca foi bem visto pela Igreja e sempre sofreu as mais ácidas críticas do clero.

O SAGRADO FEMININO E A MAÇONARIA

A maçonaria, como muitos dos símbolos que foram adoptados pela sua tradição, acabou por adaptar o título “Filho da Viúva” para representar diversos temas que são desenvolvidos no seu ritual.

Na tradição gnóstica há uma curiosa lenda oriunda da seita cainita, segundo a qual a famosa Rainha de Sabá, chamada Barcis, quando visitou o reino de Israel, na época de Salomão, ter-se-ia apaixonado pelo arquiteto do Templo, o mestre Hiram Abiff (ou Adonhiram). Do romance dos dois teria nascido um filho. Esse menino nasceu após o assassinato do mestre pelos Jubelos, razão pela qual, esse filho do “maior Maçom da terra” era chamado de “filho da viúva”. Esta lenda foi tema de uma ópera composta pelo famoso poeta e escritor francês Gerard de Nerval, que ao que parece, nunca foi encenada, mas teve circulação bastante divulgada entre os maçons franceses no século XIX.

Destarte, viúva, no caso, seria a própria instituição da maçonaria, já que o seu fundador, Hiram Abiff, também foi assassinado. No caso, os seus filhos, os maçons, seriam órfãos de pai.

Assim, na tradição da maçonaria, a expressão “Filho da Viúva” serve tanto para designar os Templários “órfãos” em relação à extinção da sua Ordem e a morte do seu “pai”, o grão-mestre Tiago de Molay, quanto aos partidários da família real inglesa, os Stuarts, em relação á morte do seu rei Carlos I, decapitado por ordem do Parlamento inglês. A viúva daquele rei teria organizado a resistência, sendo a maioria dos seus partidários constituída por maçons. A propósito, foram os stuartistas refugiados na França que desenvolveram a maior parte dos graus do Rito Escocês Antigo e Aceito, tal como o conhecemos hoje.

Historicamente, sabe-se que este título também era aplicado aos filhos das viúvas dos pedreiros medievais, as quais a lei sálica proibia de receber as heranças dos seus maridos mortos. Assim os filhos dessas mulheres eram chamados de “Filhos da Viúva”. Estes “filhos das viúvas”, que geralmente continuavam a profissão dos pais, foram os próprios maçons operativos, antecessores dos maçons atuais. A Igreja, mais tarde, recompô-los nesse direito, mas o título, aplicado aos construtores das igrejas medievais, tomou-se uma tradição que acompanhou durante muito tempo estes profissionais.

Assim, embora a maçonaria também conserve uma tradição de misoginia (não admitindo mulheres nos seus quadros), não se pode negar que ela, na sua estrutura, está ligada, de alguma forma, ao culto do “sagrado feminino”. Neste sentido seria bom que as Lojas olhassem com mais carinho e atenção para as suas “fraternidades das acácias”, no sentido de integrá-las ao movimento maçônico.



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