janeiro 01, 2021
MEMÓRIAS ESPARSAS DE SOROCABA - 13
dezembro 31, 2020
MEMÓRIAS ESPARSAS DE SOROCABA - 12
Alguns fatos divertidos da minha efêmera experiência de jornalista em Sorocaba merecem ser relembrados. O título é porque quase todos envolveram gente poderosa ou rica.
Em novembro de 1968 fui cobrir a inauguração do
primeiro trecho da Rodovia Castelo Branco que naquela época tinha o nome de
Rodovia do Oeste. Ia de São Paulo para lugar nenhum, um ponto qualquer chamado
Torre de Pedra a meio caminho de Avaré e São Manuel, mas era uma boa
alternativa para ir a São Paulo, que até então era acessada pela Rodovia Raposa
Tavares em viagem que levava cerca de duas horas e meia nos excelentes ônibus
da Viação Cometa. A Castelo tinha de ser acessada pela Éden, mesmo assim a
viagem encurtava em uma hora. Lembro-me dos protestos dos sorocabanos porque o
traçado inicial da estrada deveria passar bem próximo a cidade, e acabou
passando por Itu. A visão do longo prazo do estadista acabou se revelando
providencial pois duzentos mil veículos passando por dia em Sorocaba seriam uma
tragédia viária e a Castelinho proporcionou o desenvolvimento de um grande
parque industrial.
Está montado o palanque debaixo de um calor
infernal. As autoridades suando em bicas em seus caros ternos e aquele enxame de
“assessores” e convidados revoando em volta, mas o evento não começava, Como o
governador Abreu Sodré já estava presente ninguém entendia a razão do atraso.
Aí chega um Cadillac rabo de peixe, enorme, estaciona do lado oposto do
palanque e desce um senhor troncudo. O senhor tira a camisa, o motorista abre o
porta malas e tira uma camisa novinha, um paletó, e o passageiro se troca em
frente a todos, na beira da estrada. Era Sebastião Ferraz de Camargo Penteado,
o autor da obra, dono da Camargo Correa (o Correa já havia falecido há muito
tempo), um dos homens mais ricos e poderosos do país.
Bem está na hora de começar. Discursos daqui,
discursos dali, o mestre de cerimônias fazendo as apresentações até que chega a
fala do governador, mais ou menos assim – “essa estrada que ora entregamos ao
povo paulista é uma das obras mais importantes de nosso governo, blá, blá,
blá”. Não sei dizer se quebrou o protocolo ou não, mas Camargo pega o microfone
e com voz poderosa pontifica: - “esta estrada, construída pelo governador
Ademar de Barros e inaugurada por V. Excia.” O choque foi tão grande que a
cobertura do palanque onde se realizada a solenidade voou com o vento e a
cerimônia acabou ali. Mas a Castelo continua firme e forte mais de cinquenta
anos depois.
Laudo Natel se auto intitulava “o governador
caipira” e uma das marcas de seu governo era despachar por um dia ou mais nas
cidades do interior. Esteve algumas vezes em Sorocaba. Antes de ser governador
foi diretor do Bradesco e presidente do S. Paulo FC, aliás, um dos responsáveis
pela construção do Estádio do Morumbi. De fato, era um homem bastante cordato e
simples. Morava próximo à casa de minha irmã no Pacaembu e eu o encontrei em
uma ou duas ocasiões há alguns anos comprando pão numa padaria na Avenida
Sumaré.
Mas numa destas visitas fui designado para
acompanhá-lo e com a inconsequência da juventude colei no governador enquanto
ele descia da redação do Cruzeiro, com toda uma “entourage” a segui-lo, para a
Praça Cel. Fernando Prestes, nem me lembro por quê. Natel parou no Bar
Passarinho para um café. Eu ao lado do governador. Ele disse baixinho: - dá
para você pagar o café? - Claro, mas o senhor é dono de um banco, argumentei. –
Por isso mesmo, ele riu. – Já imaginou se eu andasse com dinheiro.
Ainda Natel. Em outra ocasião o industrial Carlos
Alberto Moura Pereira da Silva ofereceu um almoço na Chácara Sônia Maria, onde
hoje é o Carrefour. Era uma propriedade espetacular, talvez a melhor de
Sorocaba. Um número enorme de convidados sentava-se às longas mesas de madeira
aguardando o início da ágape. As travessas começaram a ser servidas, mas o
prato principal, para surpresa e angústia de todos, era frango assado, dezenas
de travessas de frango assado e ninguém sabia bem o que fazer. Sentindo no ar o
drama o “governador caipira” atacou uma coxa de frango com as mãos e em questão
de segundos todos os pedaços de frango evaporaram, enquanto os convivas se
lambuzavam deliciados.
dezembro 30, 2020
MEMÓRIAS ESPARSAS DE SOROCABA - 11
Há alguns anos, em
decorrência de ter participado de um treinamento em comércio exterior com
diplomatas brasileiros designados para o mundo todo e patrocinado pelo
Itamarati, fui coautor de um volume publicado pela USP intitulado “Promoção de
Comércio Exterior, Investimento e Tecnologia.” O convite para o treinamento
veio porque anteriormente havia escrito e publicado, patrocinado pelo Sebrae ,
o Mercoguia, o primeiro Guia do Mercosul. Alguém achou que em decorrência
destas publicações eu talvez entendesse alguma coisa do assunto e fui convidado
pela Câmara de Comércio e Indústria Brasil-Coréia do Sul, através de seu
presidente, Sr. Léo Kim, a passar um mês naquele país, com todas as despesas
pagas, onde tive a oportunidade de fazer palestras sobre comércio internacional
e transferência de tecnologia em cinco cidades.
Fui recebido na
Coréia do Sul com alguns requintes que se destinam a autoridades, como veículo
para transporte, visitas oficiais, entrevistas com membros do governo etc.
Fiquei impressionado com o progresso e desenvolvimento do país, que passou de
uma renda per capita de US$ 158,00 em 1960 para mais de US$ 27.900,00 em 1997,
três vezes mais do a brasileira. E a explicação para isso foi o fortíssimo
investimento em educação, que eu tive a oportunidade de testemunhar. Visitei
algumas escolas e uma universidade. Na época em que a internet escolar no
Brasil era apenas uma remota expectativa todas as carteiras da escola que visitei,
equivalente ao curso ginasial brasileiro, tinham computadores ligados em redes
de alta velocidade.
A tristeza que me
causa a involução da educação formal no nosso país é equivalente ao estrago que
foi feito em nosso futuro. Pelo menos duas ou três gerações foram sacrificadas
pela péssima gestão da educação. Estudei na OSE, no Estadão e no Liceu Pedro
II. Fiz o curso científico e Química Industrial simultaneamente, estudando de
manhã e à noite. Quando fui prestar o vestibular da Faculdade de Direito da
Universidade Católica de Petrópolis passei direto, sem a necessidade de
cursinho, tão boa tinha sido a base de meus estudos.
Nunca mais me
esqueci de alguns professores, Benedito Cleto, João Tortello, Dulce Pupo, Edson
Campioni, Abramo Rubens Cuter, Valério Gozzano, e outros tantos que moldaram os
meus conhecimentos. Mas o melhor professor que eu tive, meu tipo inesquecível,
foi o Prof. Lauro Sanchez, em razão de quem, nesta segunda fase de minha vida,
decidi escrever sobre História. Os professores de minha juventude representavam
a elite intelectual da cidade. Alguns desfilavam com seus jalecos brancos
angariando o respeito e admiração de todos os que por eles passavam. Eram bem
remunerados e pertenciam ao topo da classe média.
O Prof. Lauro
Sanchez, portador de severa deficiência visual, transformava as suas aulas em
roteiro de filmes, e descrevia as situações com largos gestos representando os
fatos ocorridos. Eu me lembro até hoje de uma aula de história quando descrevia
a entrada de Alexandre Magno na Índia, atravessando o Rio Ganges em barcos
depois queimados, e avançando contra os elefantes hindus fazendo um barulho
infernal, de modo que os animais, assustados, dessem meia volta e investissem
contra o seu próprio exército.
Aprendi inglês,
aperfeiçoado no Cento Cultural, e que fez enorme diferença na minha vida quando
me tornei diretor geral para o Brasil da empresa multinacional Card Guard
Scientif Survival de Israel. Tive noções de francês e latim. As aulas de física
do Prof. Valério eram tão boas que delas nasceu um dos maiores cientistas do
país, Beto Fazzio (Adalberto Fazzio), que era nosso vizinho na Rua Afonso Pena
e que atualmente é reitor de uma universidade no ABC. As ótimas aulas de
português proporcionaram que eu me tornasse jornalista e muito mais tarde
escritor. Minhas redações no ginásio foram a razão do Padre Aldo Vanucchi ter
me convidado para trabalhar na Folha Popular, depois Folha de Sorocaba.
Só era difícil
prestar atenção na aula na presença da Regis Ventrella que era o ideal de beleza
de todos os rapazes da época. Embora minhas notas não espelhassem este fato
sempre fui bom aluno. Eu tinha preguiça de estudar para as provas e ia fazê-las
de memória. E tanto lá, quanto aqui, a memória muitas vezes falha. Eu lia muito
e meus conhecimentos gerais eram mais amplos que os dos meus colegas em
diversos assuntos, e eu gostava muito de conversar com os professores, que
tinham tempo e disposição para trocar ideias com seus alunos.
E hoje em dia? Há
algum tempo fui convidado a dar uma palestra aos professores de uma grande
escola do SENAI, em cidade satélite do Distrito Federal. Eram mais ou menos
sessenta mestres. Sem falsa modéstia, minhas palestras são preparadas com
cuidado e frequentemente aplaudidas em pé. Pois bem, neste dia, metade da plateia
presente usava acintosamente seus celulares em redes sociais, fingindo que
estava prestando atenção. Eles fingem que ensinam, os alunos fingem que
aprendem e o resultado é que nem o ministro da educação escreve com português
correto. Como será então o resto da população estudantil?
Em um dos meus
livros há um capítulo sobre educação, em seus dois sentidos: as atitudes
civilizadas de comportamento e a aquisição sistematizada de conhecimentos, a
primeira responsabilidade dos pais, e a segunda dos professores. Com pai e mãe
sendo obrigados hoje a trabalhar para sustentar a família rareou a primeira
opção e com os professores mal pagos, sobrecarregados e politizados que temos,
a segunda tornou-se crítica. Ou redescobrimos a opção de uma educação – lato sensu
– de qualidade, ou estaremos condenados a ser para sempre uma nação de segunda
classe.
Não era essa a
visão que tínhamos do futuro naqueles anos dourados de 60/70 quando cada um de
nós imaginava o brilhante, fulgurante, porvir do Brasil. “Todos juntos vamos,
prá frente Brasil, salve a seleção”.
dezembro 29, 2020
MEMÓRIAS ESPARSAS DE SOROCABA - 10
dezembro 28, 2020
MEMÓRIAS ESPARSAS DE SOROCABA - 9
Havia ainda outras
famílias judias em Sorocaba. Os pais dos irmãos Epelman, Sr. Samuel e D. Fanny,
que também tinham comércio na Rua Barão do Rio Branco, os Crochik, na mesma
rua, o engenheiro têxtil da Companhia Nacional de Estamparia Isaac Lederman que
construiu umas das casas mais bonitas da cidade em Santa Rosalia vendida depois
ao industrial Alfredo Metidieri e talvez outros me fujam da memória. Com a
ajuda dos leitores tentarei preencher estas lacunas. Existe um ditado iídiche
que diz que onde há um judeu há uma forte opinião, onde há dois judeus há duas
fortes opiniões opostas e onde há três judeus há confusão. Apesar da colônia
ser pequena havia grupinhos e alguns deles não se falavam, a não ser nas festas
da sinagoga quando eram obrigados a conviver. Papai circulava com desenvoltura
por todos os grupos por várias razões. A primeira era o seu temperamento
bonachão. Rigoroso e disciplinador em casa, quando na rua era simpático, alegre
e festeiro. Muitos anos depois descobrimos que era bipolar, naquele tempo se
chamava psicose maníaco-depressiva, o que criou problemas em sua velhice. O
outro é o fato que era “russiche” e vou explicar no próximo parágrafo. E
finalmente porque era ex-combatente, e isso gerava uma aura de profundo
respeito por parte da colônia.
Existem dois
principais grupos de judeus no mundo, os “ashkenazin”, que são os da Europa
Oriental e da Ásia e os “sefaradim”, da Península Ibérica e do norte da África.
O segundo grupo é que foi a principal vítima da Inquisição. O hebraico era uma
língua litúrgica, somente utilizada nos ritos religiosas. Apenas depois da
formação de Israel passou a ser um idioma comum. O primeiro grupo se comunicava
em iídiche, o segundo em ladino. Embora sejam os mesmos livros sagrados existem
pequenas diferenças nos rituais de ambos os grupos e até hoje eles têm
sinagogas separadas. Dentro dos grupos existem subgrupos. Os “ashkenazin” têm
os “russiche”, os “poiliche” e outros (da Rússia, da Polônia etc.). Por ser a
Rússia o principal país da extinta URSS, os descendentes de russos mereciam uma
avaliação especial, mais ou menos como os ridículos juízos de valor que nós
mesmos fazemos entre os nordestinos e os cariocas.
Ouvi em alguma
ocasião um dito atribuído ao General Douglas Mc Arthur de que o alimento da
coragem é o medo e que por esta razão os soldados metidos naquele inferno da
guerra dão mostras de coragem absurda. Não sei se o dito é mesmo dele e ignoro
se o fato é verdade, mas certamente se aplica a papai cuja coragem era tamanha
que se poderia confundir a valentia com temeridade. Não somente a coragem
física, uma vez que soldados são treinados para isso, mas a audácia mental de
quem joga para ganhar, sem receio de vir a perder. Um episódio ilustra isso.
Quando meu pai
começou a circular em Parada do Alto, Barcelona, Votorantim, Piedade e outros
locais vendendo suas roupas o clima em Sorocaba no inverno era muito rigoroso e
os clientes passaram a encomendar cobertores. A medida que as encomendas
aumentavam ele decidiu ir buscar os cobertores na fonte, em São José dos
Campos, na Tecelagem Parahyba, que era a maior fábrica de cobertores do país e
a responsável por um famoso jingle publicitário que até hoje todas as pessoas
de minha idade sabem de cor. “Já é hora de dormir, não espere mamãe mandar, um
bom sono prá você e um alegre despertar”.
Ele foi de trem,
era o famoso trem de prata que fazia a linha São Paulo-Rio de Janeiro. Chegou
de manhãzinha em S.J. dos Campos e apresentou-se à portaria da enorme fábrica,
com seu terrível sotaque, querendo falar com o dono. Claro que não foi
recebido. Sentou-se então, contava, na calçada em frente, pensando que em algum
momento o dono deveria passar por ali. Papai era simpático e comunicativo e
alguém da recepção levou a informação daquele estrangeiro com sotaque esquisito
e do que ele estava fazendo e por incrível que pareça, um dos donos, Severo
Gomes, que viria a ser um político famoso anos depois, foi até lá para ver a
história. Não imagino como foi a conversa, mas conhecendo meu pai ele deve ter
dito ao industrial que tinha força para trabalhar e juízo para não fazer
besteira. Eram outros tempos. Sem ter que provar nada ele ganhou uma linha de
crédito da fábrica e se tornou um dos maiores revendedores de cobertores da
região, que ajudou bastante a formar o seu fundo de comércio e o progresso
financeiro decorrente disso. Anos depois, ao ver o então ministro Severo Gomes
na TV, comentava – foi este o homem que me ajudou sem me conhecer.
Como ele já não
está mais entre nós e de qualquer forma a esta altura já não importa mais, há
que destacar o assédio que meu pai sofria de suas clientes, encantadas com
aquele europeu bonito, de bons modos, gentil e sempre disposto a galanteios. Eu
sei que ele fez grande sucesso entre as mulheres, mas sempre foi provedor e
respeitoso em casa e meus pais acabaram por ter mais dois filhos, Arkádio
César, 15 anos mais jovem do que eu, e Raquel, 18 anos mais jovem, o que faz
supor que papai sempre esteve em boa forma.
Sentindo o
crescimento e o progresso da cidade e do estado de São Paulo de maneira geral,
ele passou a investir em imóveis. Comprou dois apartamentos que mandou emendar
em um só em frente ao Parque Trianon, na Alameda Casa Branca, uma travessa da
Avenida Paulista, comprou um apartamento de frente para o mar em Santos, no
Embaré, onde eu, garoto, tive a oportunidade de brincar uma bolinha na praia
com os jogadores do ataque do Santos, Dorval, Coutinho, Mengalvio, Pelé e Pepe.
Naquele tempo os jogadores de futebol não usavam brinco e nem tatuagens, não
tinham “frescuras” e ficavam na praia batendo bola como qualquer mortal.
Comprou ainda uma casa bem maior em uma esquina da Rua Gustavo Teixeira, em
frente ao Colégio Salesiano para onde a família se mudou. Foi a nossa última
residência em Sorocaba. Papai havia adquirido um enorme terreno em Itu, em uma
área elevada atrás da rodoviária daquela cidade e lá construiu a mansão com que
sempre sonhou. Meus irmãos Arkádio e Raquel foram criados em Itu. Ele foi
estudar e morar na África do Sul, passou cinco anos no Egito e é um diretor de
arte publicitário com dezenas de prêmios. Rachel mora em Israel
dezembro 27, 2020
MEMÓRIAS ESPARSAS DE SOROCABA - 8
dezembro 26, 2020
MEMÓRIAS ESPARSAS DE SOROCABA - 7
dezembro 25, 2020
MEMORIAS ESPARSAS DE SOROCABA - 6
Minha mãe Irena era filha de criação de uma família de fazendeiros da
aristocracia húngara. Na terrível pobreza dos anos depois da Primeira Guerra
Mundial, no destruído e desmembrado Império Austro Húngaro só havia dois tipos
de cidadãos, aqueles que possuíam terras e os que trabalhavam na terra e
lutavam arduamente para apenas sobreviver. Uma filha inesperada para quem já
sustentava família era um ônus insuportável e a menina foi dada para o idoso
casal fazendeiro criar. Era a alegria da casa e foi criada como uma
princesinha, até a sombria época da Segunda Grande Guerra, quando os pais de
criação faleceram, a fazenda foi tomada e a menina expulsa para se virar como
pudesse. Ela tinha pouco mais de treze anos.
A saga dos anos passados dormindo aonde dava e comendo aquilo no que
pudesse botar a mão são suficientes para outra história. Mas um dia, por uma
destruída estação de estrada de ferro na Hungria passava uma tropa russa a
caminho da Alemanha, e a garota, então com dezesseis para dezessete anos pediu
comida a um garboso capitão. Ficaram juntos pelo resto da vida. Era 1944 e os
soviéticos por um lado, a partir da Europa Oriental e os aliados por outro, a
partir da França, avançavam fechando o inimigo como os braços de uma tesoura,
rumo à Alemanha, que a esta altura já estava desarticulada, apenas recuando e
se defendendo, mas ainda lhe restavam bons combatentes dando muito trabalho às
tropas que avançavam. E já bem próximo da Alemanha, quase ao final do conflito,
papai foi ferido por um estilhaço de granada na perna esquerda, que lhe deixou
profundas cicatrizes. Ele foi tratado em um hospital em solo germânico, e minha
mãe também foi internada no mesmo hospital para ser tratada por desnutrição.
Estando ambos recuperados tomaram consciência que a Alemanha não era um
bom lugar para se viver, especialmente para um militar russo e judeu. Voltar
para a URSS era uma opçáo ainda pior.
Paris era ainda a capital cultural do mundo. A ocupação da França
produziu o roubo de milhares de obras de arte que desfalcaram os tesouros do
país, mas a consciência dos comandantes da ocupação alemã preservou a cidade-
ícone de destruição ou de bombardeios e a Cidade Luz rapidamente atraiu
milhares de pessoas querendo refazer sua vida. Como já contei, papai foi
trabalhar como auxiliar de cozinha em um restaurante russo e nunca mais
esqueceu de como fazer deliciosos “borscht” a sopa de beterraba com creme de
leite que é a marca registrada da culinária da Ucrânia e “pirozhki”, o bolinho
assado de repolho, uma delícia, entre muitos outros pratos. Ele cozinhava muito
bem,
Mamãe foi trabalhar em um “atelier” de costura e rapidamente retomou os
modos e a elegância com que havia sido criada. E daí para a frente, pelo resto
da vida, (e até hoje, aos 91 anos), ela não andava, mas desfilava, com luvas,
chapéus e as roupas que ela mesmo fazia ou reformava. Na Sorocaba dos anos 60 e
70 era um espetáculo que os vizinhos e conhecidos gostavam de admirar, ver a
Dona Irena, garbosa e linda como uma princesa, indo comprar pão na padaria.
A cidade de Sorocaba crescia de maneira acelerada. O censo de 1970 lista a cidade em 9º lugar no Estado de SP, com pouco mais de 175.000 habitantes. E os negócios de meu pai cresceram também. Ele alugou um sobrado do Eng. Wilson Kalil na Rua Dr. Braguinha, uma das principais artérias comerciais da cidade, onde montou a loja Modas Braguinha, e fomos morar no andar de cima do sobrado. Mas a despeito de possuir agora um comércio, do qual a minha mãe ficou encarregada, nunca deixou de trabalhar, agora com a Rural Willys lotada de mercadorias, vendendo de porta em porta. Dobrava o expediente quando voltava para a loja para lançar as vendas, fazer o caixa, preparar as comprar e separar as mercadorias que levaria no seguinte para a Rural.
dezembro 24, 2020
MEM[ORIAS ESPARSAS DE SOROCABA - 5
Meu pai não gostava de falar sobre a sua família e muito menos ainda sobre os tempos da guerra. Ao longo de muitos anos fomos arrancando alguma informação, aqui e ali, sobre tais assuntos, especialmente a Alice, com quem ele gostava de conversar quando estava já nos seus últimos anos morando na casa de minha irmã.
Nós não podemos imaginar os horrores da guerra
vendo os filmes de cinema e televisão. A dor, o sofrimento e a barbárie excedem
a prodigiosa imaginação dos roteiristas. Papai esteve durante cerca de três
anos na defesa de Leningrado ante a tentativa das tropas alemãs de destruição
da cidade. Quase um milhão e meio de habitantes morreram durante o cerco,
milhares deles de fome. Tornaram-se habituais casos de roubo de cartões de
racionamento (a ração era 250 grs. de pão por dia) e até mesmo de canibalismo.
Nenhum animal sobreviveu, cavalos, cães, gatos, pombos, todos viraram comida. O
frio absurdo fazia com a cidade fosse sendo queimada casa por casa para aquecer
os sobreviventes, fantasmas esfomeados que vagavam trôpegos, em andrajos, pelas
ruas congeladas. E o exército alemão bombardeava continuamente sem alvo
determinado, valia destruir qualquer coisa.
Um hospital que tinha dezenas de crianças feridas
internadas, muitas em estado grave, foi bombardeado. As crianças sobreviventes
encontravam-se em estado desesperador e não havia para aonde levá-las, não
havia comida, não havia medicamentos, ninguém queria recebê-las em casa, a
temperatura era de cerca de trinta graus negativos e não havia agasalhos. O
General Georgy Zhukov, que comandava as tropas soviéticas, confrontado com o
problema reuniu seus oficiais, expos o problema e pediu sugestões. A decisão
foi matar as crianças para que tivessem uma morte menos dolorosa do que
abandonadas ao relento, à fome, ao frio e à dor dos seus ferimentos. Oficiais
cumpriram a ordem chorando. Papai se negou a isso, mas assistiu e nunca mais se
esqueceu. Foi um fantasma que o acompanhou pelo resto da vida.
Ele não gostava de ver filmes de guerra na TV,
dizia que era tudo fantasia. Mas lia os jornais diariamente, principalmente o
Estadão e acompanhava os noticiários na TV. Sabia tudo o que acontecia no
mundo. Era a época da guerra fria e ele dizia que os ocidentais não entendiam a
dissimulada mentalidade soviética, de como eles inventavam mentiras nas quais
eles próprios passavam a acreditar e na extrema agressividade e valentia de um
povo que descendia dos vikings e se estabeleceu em uma das mais inóspitas
regiões do mundo. O nome Rússia, vem do nome do chefe viking Rus, que saqueou Constantinopla
no século IV e criou naquele remoto local o que viria a ser este país.
Ele adorava o Brasil e se revoltava quando um
brasileiro falava mal do país. E com seu sotaque carregado dizia: - o senhorrrr
sabe quando frrrango fica congelado no geladeirrra, como pedrrra. São quatrrrro
graus menos. Lá no Russia é trrrrinta graus menos. Senhorrrr vai prá la verrrr
se é melhorrr.
Da sua família eu soube apenas que teve irmãos e
irmãs e uma pequena foto desbotada de uma gorda matrona que o acompanhou pela
vida toda seria de sua mãe, minha avó, Ita ou Ida, eu nunca soube o certo. De
quem teria sido meu avô eu nunca ouvi uma palavra sequer.
dezembro 23, 2020
MEMÓRIAS ESPARSAS DE SOROCABA - 4
dezembro 22, 2020
MEMÓRIAS ESPARSAS DE SOROCABA - 3
O navio Andrea C, um dos famosos transatlânticos da
época, era relativamente novo, estava no mar havia apenas oito anos em 1956.
Ridículamente pequeno para os padrões atuais, com 130 mts de comprimento
transportava cerca de 450 passageiros (os navios atuais tem em média três vezes
esse comprimento e carregam 6000 passageiros) .A empresa armadora Linea C era
italiana e o navio fazia escala em Gênova, no seu trajeto rumo ao Brasil e
Argentina. Embora estivéssemos na segunda classe, era uma classe confortável na
epoca.
Em Gênova ficamos algumas horas e deu para passear
nas imediações do Porto. Minha irmãzinha e eu fomos balançar na enferrujada
corrente que cercava o monumento a Cristóvão Colombo, esta se partiu, e foi
nossa primeira contribuição ao dano ao patrimônio internacional.
Houve também uma escala na Ilha da Madeira. Papai
gastou um pouco do escasso dinheiro que trazia adquirindo algumas belas colchas
bordadas a mão e lindas bonecas com carinha de porcelana, que pareciam bebês
mesmo.
A escolha do Brasil não foi acidental. Além de
haver uma estrutura de recepção aos imigrantes judeus, havia em São Paulo um
bem sucedido industrial que era parente de um parente da família de meu pai em
Odessa, e a vasta rede de apoio que se dava às vitimas da Grande Guerra o
suportaria na sua chegada, como de fato ocorreu.
Ficamos algum tempo morando em uma pensão no Bom
Retiro, na Rua dos Italianos, e demonstrando uma insuspeitada vocação
comercial, meu pai vendeu com razoável lucro as colchas e as bonecas melhorando
seus recursos. Uma das colchas ficou e sobreviveu na família por muitos anos.
Era o tempo de São Paulo da garoa e ele foi vender guarda-chuvas para uma
empresa do Bom Retiro, Guarda Chuvas Jardim. Há alguns anos fiz uma palestra no
Rotary Clube do Bom Retiro e a loja da fábrica ainda existia, 50 anos depois. Até
hoje não consigo entender como é que ele fazia para vender sua mercadoria
porque ainda não falava portugues. Falava russo, idíshe, hebraico, alemão e um
pouco de árabe, mas portugues, neca.
O Sr. Teperman, aquele distante parente do parente
de papai sugeriu que mudassemos para o interior, quem sabe para a florescente
cidade de Sorocaba, onde encontrariamos melhores condições de vida e de
trabalho. Havia um mascate judeu, baixinho, franzino, idoso, Sr. Oyzer, que
morava em um quarto de uma pensão próxima a estação da estrada de ferro, que se
dispos a vender a sua "clientela" para meu pai. Assim, depois de
visitar um por um dos clientes apresentando o novo mascate o Sr. Oyzer passou
as cadernetas de clientes para o meu pai e não sei que fim ele levou.
E assim, em Sorocaba, começa uma nova etapa na
existência do Sr. Alex Winetzki, este herói de dois mundos, que recomeçava em
um país estranho, com uma língua desconhecida, com esposa e dois filhos
pequenos, aos 41 anos de idade.
dezembro 21, 2020
MEMÓRIAS ESPARSAS DE SOROCABA - 2
Embora na então Palestina (de Philistia, dos Filisteus) ainda sob o Mandato Britânico, já existissem inúmeras colônias judaicas, desde o século 19, em terrenos adquiridos e pagos por mecenas europeus como os Rothschild e o Barão Hirsch, após a Declaração da Independência de Israel, em 1948, o país se tornou uma colcha de retalhos de imigrantes judeus de todas as partes do mundo.
Era uma multidão procurando um lar definitivo para
se estabelecer, a Terra Ancestral dada pelo Senhor a Moisés. Pessoas de todas
as idades, de todas as formações, com ou sem qualificações, com idiomas e
dietas diversos, algo impossível de dar certo. O país não oferecia nada, nem
terra fértil, nem indústrias, nem agricultura extensiva, nem sequer um governo
que se entendia entre si. Mas todos unidos no ideal expresso por uma
tradicional oração dos judeus, ‘’O ano que vem em Jerusalém”.
Papai foi um destes imigrantes. Apesar de sua
formação militar e em matemática, estabeleceu-se em um pequeno aldeamento,
‘kiriat” em hebraico, nos arredores de Hadera, onde nasci, palavra que
significa pântano em hebraico, o que descreve bem o local. Lá sustentava a
família com uma charrete entregando barras de gelo de casa em casa no país que
em seu início tinha pouca energia elétrica e quase nenhuma refrigeração, mas a
escassa comida precisava ser conservada. Cuidava ainda de uma pequena roça e
muitas noites, com seus vizinhos, fazia a ronda para proteger a aldeia dos
constantes ataques dos terroristas árabes, os ‘fedayin”. Aliás, meu pai andou
armado a vida inteira e a não ser na guerra, nunca feriu nem matou ninguém, o
que mais uma vez prova que o perigo não está no instrumento, mas em quem puxa o
gatilho.
Curiosidade. Nasci no Hospital Militar Inglês. Na
minha última viagem a Israel fui rever a minha cidade natal, atualmente uma
grande cidade que tem inclusive uma usina nuclear, e o local onde vim ao mundo
era agora um Hospital de Doenças Mentais. Foi o meu alfa. Que não seja o meu
ômega.
Seu maior tesouro era o cavalo, o mais cobiçado
troféu de furto dos ‘fedayin’ e na casinha de madeira ele dormia com a janela
aberta, com a corda que amarrava o cavalo presa no braço e o revolver na mão,
mas nunca houve problemas. Sua reputação de bom atirador não justificava o
risco para os larápios. E o país ia sendo construído passo a passo pela força e
pela fé de quem retornava à sua Pátria ancestral, apesar da absurda escassez de
recursos.