janeiro 04, 2021

OS PADROEIROS: S. João Batista e S. João Evangelista


Na abertura dos trabalhos de uma Loja, quando o VM declara: ” - A Glória do G:.A:.D:.U:. e em honra a S. João, nosso Padroeiro”, a questão que surge naturalmente é: qual S. João é o padroeiro da maçonaria, uma vez que existem vários, como por exemplo: São João Batista; S. João da Escócia; São João de Patmos,  o autor do Apocalipse e tradicionalmente identificado como sendo São João Evangelista; São João Crisóstomo;  São João, o Jejuador;  São João Clímaco e pelo menos outros dez santos com o mesmo nome.

Existe um consenso de que nossa Ordem tem DOIS padroeiros que seriam  São João Batista e São João Evangelista, sobre os quais iremos discorrer. O nome João significa “Deus é propício”.

“Sou a Voz que clama no deserto: aplainai o caminho do Senhor”

Vestido simplesmente com uma pele de cordeiro atada com um cinto de couro batizava (batismo significa banho) multidões no Rio Jordão mergulhando suas cabeças nas águas do rio para limpa-los espiritualmente. Segundo nos relata o Livro da Lei, S. João Batista era filho de Isabel, prima de Maria e, portanto primo segundo de Jesus Cristo. Ele dizia ser “a voz que clama no deserto: aplainai o caminho do Senhor”. Essa citação aparece em todos os Evangelhos: Isaías 40:3; Mateus 3:3; Marcos 1:3; Lucas 3:4 3 João 1:23.

 Foi o primeiro a identificar Jesus como o Salvador. Quando Jesus apareceu para ser batizado João disse que não era digno sequer de atar as suas sandálias, mas ante a insistência do Nazareno procedeu ao batismo e consta que ouviu-se uma poderosa voz que disse “esse é meu Filho amado sobre o qual ponho toda minha complacência”.

Comemora-se o seu dia em 24 de Junho, solstício de Câncer ou de inverno (no nosso hemisfério) data que coincide com a fundação da Grande Loja da Inglaterra em 1717.

 Há dois solstícios no ano, em junho e dezembro e significam o início das estações, inverno ou verão. No hemisfério sul as datas variam entres 21 a 24 de Junho para o solstício de inverno e 21 a 24 de dezembro para o solstício de verão. No hemisfério norte é o contrário.

 Nas culturas antigas, o solstício de inverno, o dia mais curto do ano, a partir de quando a duração do dia começa a crescer, simbolizava o início da vitória da luz sobre a escuridão. Com o tempo essa data passou a simbolizar o Natal, como forma de incorporar essa festa pagã nas novas comunidades cristãs.

São João Evangelista, o Teólogo

Foi o discípulo mais jovem e consta ter sido o mais amado por Jesus. Foi o único que acompanhou Cristo até a sua morte. O Evangelho de João menciona que Jesus confiou sua mãe Maria aos seus cuidados, antes de seu sacrifício.

Foi o autor do quarto Evangelho, de três Epístolas e do Apocalipse. O seu Evangelho difere dos outros três, pois enfoca mais o aspecto espiritual de Jesus, ou seja, a vida e a obra do Mestre em comunhão e meditação.

Apesar de muitas vezes perseguido e martirizado a tradição diz que viveu puro e casto até o fim de seus dias e a sua vida é um exemplo de inocência, lealdade, amizade e dedicação à obra de Jesus. Recebeu da Igreja o título de “Teólogo”.

Comemora-se a sua data em 27 de Dezembro, que coincide com o nosso solstício de verão, ou de inverno no hemisfério norte. Também chamado de Solstício de Capricórnio.

O Apóstolo escreve em João 3:5 “Em verdade, em verdade, vos digo, quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar no Reino do Céu”, e isso remete ao ritual de nossa iniciação. O nascimento na Terra, a purificação pela água e pelo fogo (espírito) e a ascensão (ar) ao Reino, transformando o homem comum em um maçom justo e perfeito, pronto para a construção do Templo Interior em Honra e Glória ao G:.A:.D:.U:.

janeiro 03, 2021

MEMÓRIAS ESPARSAS DE SOROCABA - 15

 

Estas crônicas são publicadas em dois grupos de Facebook, no Lembranças de Sorocaba e no Michael Winetzki, meu pessoal, para o qual estão todos também convidados. Fico feliz com a repercussão que têm tido e com tantos amigos de juventude que reencontrei. Mas a crônica a respeito do Chico de Paula, na qual elogiei a sua culinária e de seu companheiro na época, o Moises, acabou gerando mensagens de curiosidade a respeito de que tipo de comida eles faziam. Eu copiei algumas receitas deles e fiz em casa, adoro cozinhar. Não ficou exatamente igual, faltou aquele toque de gênio, mas ficou muito bom mesmo. Então presenteio os leitores com essas receitas exclusivas autorizando a reprodução, mas pedindo que, por favor, não mudem os nomes, em respeito à autoria de ambos.

Talharim à moda do Chico

Aqueço três colheres de sopa de óleo e frito duas cebolas médias picadas em rodelas e dois pimentões verdes picados. Quando estiverem fritos junto seis colheres de sopa de purê de tomate e três cubos de caldo de galinha e deixo cozinhar por cinco minutos. Dissolvo duas colheres de maizena em água fria e acrescento ao cozimento deixando ferver por mais alguns minutos. Acerto o sal. Adiciono uma xicara de catupiry e despejo em um pirex sobre o talharim pré cozido. Decoro com salsa e se desejar com queijo parmesão ralado e azeitonas pretas. Levo ao forno por 20 minutos ou até dourar. Eles sempre faziam essa massa, artesanalmente, em casa, então segue a receita da massa.

Talharim artesanal à moda do Mói

Bato dois ovos, uma colher de sopa de azeite e coloco sal a gosto. Sobre uma superfície lisa vou acrescentando farinha e misturando até dar o ponto. O ponto é quando a massa não gruda mais na mão. Faço duas bolas e vou abrindo com um pau de macarrão (uma garrafa também dá), sempre acrescentando farinha e abrindo até que fique na espessura desejada, mais grossa ou mais fina. Quando atingir essa espessura deixo a massa aberta, vou regando com farinha, e com uma faca corto na largura desejada. Fica meio irregular, mas é o charme da massa artesanal.

Pescada à moda do Chico

Tempero oito files de pescada com sal, pimenta do reino e limão. No liquidificador bato meia lata de pomarola, meio copo de requeijão e meio vidro de leite de coco. Coloco em uma assadeira uma camada de molho, em seguida os filés e outra camada de molho. Levo ao forno por dez minutos. Eu fiz essa receita também colocando fatias de muçarela sobre a camada final de molho. Ficou bom. Já fiz com outros peixes também.

Pão recheado à moda do Mói

Coloco 50 gramas de fermento de pão em uma xícara de leite e deixo por quinze minutos. Após adiciono uma colher de açúcar e bato no liquidificador com um ovo, meia xicara de óleo e uma colher de sal. Misturo com duas xícaras de farinha de trigo, (se for necessário acrescento mais farinha até dar o ponto). Cubro a bola resultante com um pano úmido e deixo descansar por quinze minutos antes de abrir a massa. Depois abrir, rechear, fechar em forma de pãozinho redondo, pincelar com gema de ovo e assar em forno médio até dourar. Para o recheio misturo carne moída crua com tomate, cebola picadinha, cheiro verde, pimenta do reino, sal, muçarela, presunto e orégano.

Acho que pude dar uma vaga ideia das delícias das quais desfrutamos por tantos anos. O Mói ainda está por aí, é leitor destas crônicas, e deve estar fazendo tudo isso para o seu amor, a Aninha. Como amanhã começa o fim de semana, aproveitem e experimentem. Vão me dar razão.

janeiro 02, 2021

MEMÓRIAS ESPARSAS DE SOROCABA - 14

 

Em Sorocaba tínhamos entre outros considerados ricos os irmãos Dero e o Miltinho Metidieri e o Flavinho Barbero desfilando nos carrões da época. A gente os qualificava de “play-boys” mas eram rapazes de bom caráter desfrutando o padrão de vida que o trabalho dos pais lhes proporcionou. Mas o carro mais chamativo de minha época, na minha opinião, era o Karmann Guia transformado em boate do Luiz José Troy, que não era rico nem nada mas tinha um danado de um bom gosto.

Os costumes eram diferentes nos anos de ouro que descrevo. Ser rico ou pobre não qualificava as pessoas como melhores ou piores. Cidadãos costumavam ser julgados pelo caráter e não pela conta bancária, muito menos pelos “likes” nas redes sociais, que sequer existiam. Quando fui cursar faculdade em Petrópolis, entrava na fila na agência da CTB para ligar para a família em Sorocaba de um sólido telefone de ebonite preto, enquanto aguardava sucessivos por avisos de “os circuitos estão ocupados, queira aguardar alguns momentos” e esses momentos algumas vezes se estendiam por horas. Claro que existiam, como sempre existiram delinquentes em cargos públicos, mas naquela época as fortunas costumavam ser construídas por muito trabalho ao longo de muito tempo.

E o que é notável é que os ricos de Sorocaba investiram na sua própria cidade, construíram empresas e montaram indústrias, aplicaram na construção civil e em outras atividades e transformaram a pacata cidade do interior nesta fulgurante potência econômica em que se tornou.

janeiro 01, 2021

MEMÓRIAS ESPARSAS DE SOROCABA - 13


Memórias são como uma teia. Quando você puxa o fio de uma lembrança, surgem outras e mais outras, sem lógica alguma, sem cronologia. Ocorre uma sinapse e pronto, coisas das quais você não se recordava surgem em technicolor, com todos os detalhes, locais, nomes. Mas são personalíssimas, e em muitas ocasiões pessoas que estiveram conosco no mesmo episódio tem lembranças diferentes. Fiz um curso de Teoria Geral da Organização Humana do Professor Dr. Antonio Rubbo Muller da USP, que ensina a elaboração do quadro mental e de quantas variáveis existem de pessoa para pessoa na formação de nossas memórias. Então muitos dos leitores destas crônicas terão uma visão diferente dos fatos que relato e eu ficaria muito grato se pudessem me ajudar a completar as lacunas ou a corrigir, como estão fazendo, alguns enganos.
O jornalismo na minha época era muito informal. Embora a qualidade dos jornalistas fosse excelente, as redações eram abertas, qualquer pessoa podia entrar, sentar-se à mesa, conversar, trazer fatos ou contar fofocas. Eram muitas fofocas. Quando passei a dedicar meu tempo à Folha, o Rui, que era artista plástico além de excelente redator, fez uma credencial de jornalista e me presenteou com ela. Foi o passaporte para uma grande aventura.
Eu faltava muito às aulas, já contei por que, e copiava as matérias e estudava nos finais de semana. A credencial passou a representar atividades também neste período. Passei a ter acesso livre aos clubes, o Sorocaba Clube, o Recreativo, o Circolo, eventos, festas, etc. As TVs eram ainda uma realidade distante e rara da população naquela época e as mídias escrita e falada dos jornais e rádios eram proporcionalmente muito mais importantes do que são nos dias de hoje. Outro fato daquela[epoca é que os clubes eram muito mais ativos. Havia bailes, shows, eventos, praticamente todas as semanas, com grande afluência.
Um dia surge na redação um senhor que se apresenta como o mímico Ricardo Bandeira. Eu nunca tinha ouvido falar nele e não havia Google que pudesse nos informar. Mostra diversos cartazes de suas apresentações e várias deles em alfabeto cirílico, em idioma russo. Contou que tinha acabado de vir da Rússia onde ficou por algum tempo fazendo shows. Disse que falava um pouco de russo. Era um comunista romântico, tipo o Jorge Amado ou Oscar Niemeyer. Embora papai detestasse os comunistas, pelo fato de ele poder exercitar o idioma natal eu levei o sr. Bandeira para casa, onde ele ficou hospedado. Foi uma festa. Litros de vodka e contínuas gargalhadas pontuaram os dias seguintes. Consegui uma apresentação do mímico, se não me engano no Recreativo, com entradas pagas. Embora não houvesse tanto público foi maravilhoso. E hoje vejo no Google que ele foi considerado talvez o maior mímico do Brasil, um dos melhores do mundo. Ele me pagou uma comissão. Foi o primeiro e único cachê que ganhei na vida.
No meio da Rua Carlos Gomes, aquela travessinha ao lado da Catedral funcionava uma das mais famosas boutiques da cidade, chamada Sinhá, que pertencia ao casal Terezinha e Levy, um simpático senhor, talvez de origem francesa. Quem os apresentou a mim foi a Leila Puglia, nem me lembro por que, mas o que sei é que lá trabalhava uma linda jovem chamada Marlene Valdeliz. Por conta do seu encanto eu descia todas as tardes da redação para a boutique com a desculpa de tomar café, e só para revê-la. Como eu já comentei a credencial de jornalista me dava livre acesso a todo tipo de eventos na cidade e em certa ocasião eu a convidei para o carnaval dos americanos no Sorocaba Clube. Voltamos de madrugada, a pé, até a Rua Santa Catarina onde ela morava, já enamorados e ela se tornou dois anos depois a minha primeira esposa.
No buracão do Vergueiro, uma das primeiras obras foi uma Igreja Adventista, cuja construção foi comandada por um simpático pastor chamado Flávio Garcia. Como eu havia estudado alguns meses, no ginásio, no Colégio Adventista Campineiro em Hortolândia, (e destaco que a qualidade da educação adventista faz uma grande diferença na vida de um estudante) ajudei a fazer campanha para a construção da Igreja. Aquele enorme espaço vazio começava a desaparecer. O meu querido Romeu-Sergio Osório contou que da janela do quarto dele na Av. Barão de Tatuí ele via a Rua Humaitá por sobre aquele imenso descampado.
Além da disciplina do Colégio Adventista, de liberdade com responsabilidade que a gente carrega por toda a vida (hoje eu sei que é baseada na pedagogia de John Dewey), uma memória engraçada é de quando me candidatei ao coral da Colégio, que é famoso e proporcionava alguns privilégios como as constantes viagens para apresentações, fui fazer um teste com a maestrina Flávia. Depois de alguns solfejos ela, sorrindo, me disse, Michael você tem tudo para ser cantor, faltam só três detalhes. – Quais professora? Voz, ritmo e afinação.

dezembro 31, 2020

MEMÓRIAS ESPARSAS DE SOROCABA - 12

 




Alguns fatos divertidos da minha efêmera experiência de jornalista em Sorocaba merecem ser relembrados. O título é porque quase todos envolveram gente poderosa ou rica.

Em novembro de 1968 fui cobrir a inauguração do primeiro trecho da Rodovia Castelo Branco que naquela época tinha o nome de Rodovia do Oeste. Ia de São Paulo para lugar nenhum, um ponto qualquer chamado Torre de Pedra a meio caminho de Avaré e São Manuel, mas era uma boa alternativa para ir a São Paulo, que até então era acessada pela Rodovia Raposa Tavares em viagem que levava cerca de duas horas e meia nos excelentes ônibus da Viação Cometa. A Castelo tinha de ser acessada pela Éden, mesmo assim a viagem encurtava em uma hora. Lembro-me dos protestos dos sorocabanos porque o traçado inicial da estrada deveria passar bem próximo a cidade, e acabou passando por Itu. A visão do longo prazo do estadista acabou se revelando providencial pois duzentos mil veículos passando por dia em Sorocaba seriam uma tragédia viária e a Castelinho proporcionou o desenvolvimento de um grande parque industrial.

Está montado o palanque debaixo de um calor infernal. As autoridades suando em bicas em seus caros ternos e aquele enxame de “assessores” e convidados revoando em volta, mas o evento não começava, Como o governador Abreu Sodré já estava presente ninguém entendia a razão do atraso. Aí chega um Cadillac rabo de peixe, enorme, estaciona do lado oposto do palanque e desce um senhor troncudo. O senhor tira a camisa, o motorista abre o porta malas e tira uma camisa novinha, um paletó, e o passageiro se troca em frente a todos, na beira da estrada. Era Sebastião Ferraz de Camargo Penteado, o autor da obra, dono da Camargo Correa (o Correa já havia falecido há muito tempo), um dos homens mais ricos e poderosos do país.

Bem está na hora de começar. Discursos daqui, discursos dali, o mestre de cerimônias fazendo as apresentações até que chega a fala do governador, mais ou menos assim – “essa estrada que ora entregamos ao povo paulista é uma das obras mais importantes de nosso governo, blá, blá, blá”. Não sei dizer se quebrou o protocolo ou não, mas Camargo pega o microfone e com voz poderosa pontifica: - “esta estrada, construída pelo governador Ademar de Barros e inaugurada por V. Excia.” O choque foi tão grande que a cobertura do palanque onde se realizada a solenidade voou com o vento e a cerimônia acabou ali. Mas a Castelo continua firme e forte mais de cinquenta anos depois.

Laudo Natel se auto intitulava “o governador caipira” e uma das marcas de seu governo era despachar por um dia ou mais nas cidades do interior. Esteve algumas vezes em Sorocaba. Antes de ser governador foi diretor do Bradesco e presidente do S. Paulo FC, aliás, um dos responsáveis pela construção do Estádio do Morumbi. De fato, era um homem bastante cordato e simples. Morava próximo à casa de minha irmã no Pacaembu e eu o encontrei em uma ou duas ocasiões há alguns anos comprando pão numa padaria na Avenida Sumaré.

Mas numa destas visitas fui designado para acompanhá-lo e com a inconsequência da juventude colei no governador enquanto ele descia da redação do Cruzeiro, com toda uma “entourage” a segui-lo, para a Praça Cel. Fernando Prestes, nem me lembro por quê. Natel parou no Bar Passarinho para um café. Eu ao lado do governador. Ele disse baixinho: - dá para você pagar o café? - Claro, mas o senhor é dono de um banco, argumentei. – Por isso mesmo, ele riu. – Já imaginou se eu andasse com dinheiro.

Ainda Natel. Em outra ocasião o industrial Carlos Alberto Moura Pereira da Silva ofereceu um almoço na Chácara Sônia Maria, onde hoje é o Carrefour. Era uma propriedade espetacular, talvez a melhor de Sorocaba. Um número enorme de convidados sentava-se às longas mesas de madeira aguardando o início da ágape. As travessas começaram a ser servidas, mas o prato principal, para surpresa e angústia de todos, era frango assado, dezenas de travessas de frango assado e ninguém sabia bem o que fazer. Sentindo no ar o drama o “governador caipira” atacou uma coxa de frango com as mãos e em questão de segundos todos os pedaços de frango evaporaram, enquanto os convivas se lambuzavam deliciados.

dezembro 30, 2020

MEMÓRIAS ESPARSAS DE SOROCABA - 11

 

Há alguns anos, em decorrência de ter participado de um treinamento em comércio exterior com diplomatas brasileiros designados para o mundo todo e patrocinado pelo Itamarati, fui coautor de um volume publicado pela USP intitulado “Promoção de Comércio Exterior, Investimento e Tecnologia.” O convite para o treinamento veio porque anteriormente havia escrito e publicado, patrocinado pelo Sebrae , o Mercoguia, o primeiro Guia do Mercosul. Alguém achou que em decorrência destas publicações eu talvez entendesse alguma coisa do assunto e fui convidado pela Câmara de Comércio e Indústria Brasil-Coréia do Sul, através de seu presidente, Sr. Léo Kim, a passar um mês naquele país, com todas as despesas pagas, onde tive a oportunidade de fazer palestras sobre comércio internacional e transferência de tecnologia em cinco cidades.

Fui recebido na Coréia do Sul com alguns requintes que se destinam a autoridades, como veículo para transporte, visitas oficiais, entrevistas com membros do governo etc. Fiquei impressionado com o progresso e desenvolvimento do país, que passou de uma renda per capita de US$ 158,00 em 1960 para mais de US$ 27.900,00 em 1997, três vezes mais do a brasileira. E a explicação para isso foi o fortíssimo investimento em educação, que eu tive a oportunidade de testemunhar. Visitei algumas escolas e uma universidade. Na época em que a internet escolar no Brasil era apenas uma remota expectativa todas as carteiras da escola que visitei, equivalente ao curso ginasial brasileiro, tinham computadores ligados em redes de alta velocidade.

A tristeza que me causa a involução da educação formal no nosso país é equivalente ao estrago que foi feito em nosso futuro. Pelo menos duas ou três gerações foram sacrificadas pela péssima gestão da educação. Estudei na OSE, no Estadão e no Liceu Pedro II. Fiz o curso científico e Química Industrial simultaneamente, estudando de manhã e à noite. Quando fui prestar o vestibular da Faculdade de Direito da Universidade Católica de Petrópolis passei direto, sem a necessidade de cursinho, tão boa tinha sido a base de meus estudos.

Nunca mais me esqueci de alguns professores, Benedito Cleto, João Tortello, Dulce Pupo, Edson Campioni, Abramo Rubens Cuter, Valério Gozzano, e outros tantos que moldaram os meus conhecimentos. Mas o melhor professor que eu tive, meu tipo inesquecível, foi o Prof. Lauro Sanchez, em razão de quem, nesta segunda fase de minha vida, decidi escrever sobre História. Os professores de minha juventude representavam a elite intelectual da cidade. Alguns desfilavam com seus jalecos brancos angariando o respeito e admiração de todos os que por eles passavam. Eram bem remunerados e pertenciam ao topo da classe média.

O Prof. Lauro Sanchez, portador de severa deficiência visual, transformava as suas aulas em roteiro de filmes, e descrevia as situações com largos gestos representando os fatos ocorridos. Eu me lembro até hoje de uma aula de história quando descrevia a entrada de Alexandre Magno na Índia, atravessando o Rio Ganges em barcos depois queimados, e avançando contra os elefantes hindus fazendo um barulho infernal, de modo que os animais, assustados, dessem meia volta e investissem contra o seu próprio exército.

Aprendi inglês, aperfeiçoado no Cento Cultural, e que fez enorme diferença na minha vida quando me tornei diretor geral para o Brasil da empresa multinacional Card Guard Scientif Survival de Israel. Tive noções de francês e latim. As aulas de física do Prof. Valério eram tão boas que delas nasceu um dos maiores cientistas do país, Beto Fazzio (Adalberto Fazzio), que era nosso vizinho na Rua Afonso Pena e que atualmente é reitor de uma universidade no ABC. As ótimas aulas de português proporcionaram que eu me tornasse jornalista e muito mais tarde escritor. Minhas redações no ginásio foram a razão do Padre Aldo Vanucchi ter me convidado para trabalhar na Folha Popular, depois Folha de Sorocaba.

Só era difícil prestar atenção na aula na presença da Regis Ventrella que era o ideal de beleza de todos os rapazes da época. Embora minhas notas não espelhassem este fato sempre fui bom aluno. Eu tinha preguiça de estudar para as provas e ia fazê-las de memória. E tanto lá, quanto aqui, a memória muitas vezes falha. Eu lia muito e meus conhecimentos gerais eram mais amplos que os dos meus colegas em diversos assuntos, e eu gostava muito de conversar com os professores, que tinham tempo e disposição para trocar ideias com seus alunos.

E hoje em dia? Há algum tempo fui convidado a dar uma palestra aos professores de uma grande escola do SENAI, em cidade satélite do Distrito Federal. Eram mais ou menos sessenta mestres. Sem falsa modéstia, minhas palestras são preparadas com cuidado e frequentemente aplaudidas em pé. Pois bem, neste dia, metade da plateia presente usava acintosamente seus celulares em redes sociais, fingindo que estava prestando atenção. Eles fingem que ensinam, os alunos fingem que aprendem e o resultado é que nem o ministro da educação escreve com português correto. Como será então o resto da população estudantil?

Em um dos meus livros há um capítulo sobre educação, em seus dois sentidos: as atitudes civilizadas de comportamento e a aquisição sistematizada de conhecimentos, a primeira responsabilidade dos pais, e a segunda dos professores. Com pai e mãe sendo obrigados hoje a trabalhar para sustentar a família rareou a primeira opção e com os professores mal pagos, sobrecarregados e politizados que temos, a segunda tornou-se crítica. Ou redescobrimos a opção de uma educação – lato sensu – de qualidade, ou estaremos condenados a ser para sempre uma nação de segunda classe.

Não era essa a visão que tínhamos do futuro naqueles anos dourados de 60/70 quando cada um de nós imaginava o brilhante, fulgurante, porvir do Brasil. “Todos juntos vamos, prá frente Brasil, salve a seleção”.

dezembro 29, 2020

MEMÓRIAS ESPARSAS DE SOROCABA - 10


        O judeu mais famoso da cidade foi Salomão Pavlovsky, carioca de Inhaúma que adotou Sorocaba para viver e onde se consolidou como um dos mais expressivos comunicadores do rádio no Brasil, a ponto de ter um biografia publicada pelo jornalista sorocabano José Antônio Rosa, excelente livro aliás, sob o título “O livro de Salomão”.
        Papai era ucraniano de Shargorod, e criado pela tia, em Odessa, cidade eternizada no clássico do cinema “Encouraçado Potemkin” de Sergei Eisenstein, que conta o motim da tripulação do navio de guerra que antecipou a revolução bolchevique. O pai de Salomão, Moisés Pavlovsky era também ucraniano o que acabou gerando uma proximidade entre eles, além do fato que ambos eram comunicativos e simpáticos. Salomão ia frequentemente em casa para conversar e se desmanchava em rapapés com a minha mãe, com a proverbial gentileza europeia. D. Mary, sua esposa, era mais reservada, embora fosse tão inteligente quanto o marido e a autora do nome Vanguarda para a rádio que Salomão criaria em parceria com os irmãos Otto e Joubert Wey. Menino ainda participei de algumas destas conversas. Na época de nossa chegada à Sorocaba Salomão tinha, se não me engano, um serviço de alto-falantes que anunciava o comércio local. Mais tarde ele foi trabalhar na PRD-7, Rádio Clube de Sorocaba e no jornal Cruzeiro do Sul.
        Posteriormente fundou a Rádio Vanguarda AM, e naquela era de ouro do rádio brasileiro, com Vicente Leporace, Hélio Ribeiro e outros tantos, destacou-se como repórter entrevistando presidentes, primeiros ministros, a rainha da Inglaterra, astronautas e até Glenn Ford, que ele trouxe para tomar uma cachacinha em Sorocaba. Viajou por todo o mundo levando o seu gravador e trazendo entrevistas que marcaram a história do radio brasileiro. Sua amizade com o judeu Silvio Santos, (Senor Abravanel) lhe permitiu instalar em Sorocaba uma emissora de TV, propriedade da família até os dias de hoje. Salomão, que participou de vários juris dos programas de Silvio Santos chegou a insistir para que minha irmã se inscrevesse no concurso de Miss Brasil, proposta que ela nem levou em consideração, o que foi uma pena. A Vanguarda também foi a primeira emissora FM do Estado de São Paulo.
        Ele contava as suas aventuras nas conversas com papai, enquanto este também lembrava as aventuras vividas na Europa e em Israel. Para um menino como eu parecia que estavam contando histórias dos gibis que eu gostava de ler, pura fantasia. Mas era verdade.
        A região de Odessa que originalmente ficava na Trácia, parte importante do Império macedônio, depois romano, foi incorporada à Rússia no século 18 e se dizia que sua característica era ser “a mais europeia das cidades da Rússia”. Sua arquitetura era baseada nos modelos franceses e italianos e tinha a maior colônia judaica do país. Falava-se tanto russo quanto francês e a educação era baseada nos moldes europeus. Essas características passaram para os nascidos na cidade e seus descendentes, entre os quais Salomão e papai, que eram cultos, educados e cosmopolitas.
        Depois de estudar na OSE, no Estadão, no Liceu Pedro II, eu prestei vestibular para a Faculdade de Direito da Universidade Católica de Petrópolis, consegui um emprego na IBM do Rio de Janeiro e fui residir na Cidade Imperial. Minha irmã Genia foi cursar jornalismo em Campinas e ficou morando lá. Papai mudou-se para Itu onde construiu uma casa enorme, linda, num imenso terreno. A esta altura ele tinha representantes em diversos bairros de Sorocaba e da região vendendo as suas mercadorias e continuava distribuindo os cobertores que permitiram a sua afluência. Foi o fim da permanência de nossa família em Sorocaba, mas eu voltaria a morar na cidade anos depois.
        Creio que aqui acabam essas esparsas histórias de nossa vida em Sorocaba. Nas próximas postagens publicarei as minhas próprias lembranças de pessoas que passaram pela minha juventude e que deixaram marcas indeléveis em minha memória e no meu coração. Alguns ainda estão neste grupo entre nós. Outros não estão no grupo, o talento os levou para outros patamares como Paulo Betti e Eliane Giardini. Vários já descansam na eternidade como Rui Batista de Albuquerque Martins, José Caetano Graziozi, Celso Vitório de Toledo, Carlos Tadeu César Papst e muitos outros.

dezembro 28, 2020

MEMÓRIAS ESPARSAS DE SOROCABA - 9

 

Havia ainda outras famílias judias em Sorocaba. Os pais dos irmãos Epelman, Sr. Samuel e D. Fanny, que também tinham comércio na Rua Barão do Rio Branco, os Crochik, na mesma rua, o engenheiro têxtil da Companhia Nacional de Estamparia Isaac Lederman que construiu umas das casas mais bonitas da cidade em Santa Rosalia vendida depois ao industrial Alfredo Metidieri e talvez outros me fujam da memória. Com a ajuda dos leitores tentarei preencher estas lacunas. Existe um ditado iídiche que diz que onde há um judeu há uma forte opinião, onde há dois judeus há duas fortes opiniões opostas e onde há três judeus há confusão. Apesar da colônia ser pequena havia grupinhos e alguns deles não se falavam, a não ser nas festas da sinagoga quando eram obrigados a conviver. Papai circulava com desenvoltura por todos os grupos por várias razões. A primeira era o seu temperamento bonachão. Rigoroso e disciplinador em casa, quando na rua era simpático, alegre e festeiro. Muitos anos depois descobrimos que era bipolar, naquele tempo se chamava psicose maníaco-depressiva, o que criou problemas em sua velhice. O outro é o fato que era “russiche” e vou explicar no próximo parágrafo. E finalmente porque era ex-combatente, e isso gerava uma aura de profundo respeito por parte da colônia.

Existem dois principais grupos de judeus no mundo, os “ashkenazin”, que são os da Europa Oriental e da Ásia e os “sefaradim”, da Península Ibérica e do norte da África. O segundo grupo é que foi a principal vítima da Inquisição. O hebraico era uma língua litúrgica, somente utilizada nos ritos religiosas. Apenas depois da formação de Israel passou a ser um idioma comum. O primeiro grupo se comunicava em iídiche, o segundo em ladino. Embora sejam os mesmos livros sagrados existem pequenas diferenças nos rituais de ambos os grupos e até hoje eles têm sinagogas separadas. Dentro dos grupos existem subgrupos. Os “ashkenazin” têm os “russiche”, os “poiliche” e outros (da Rússia, da Polônia etc.). Por ser a Rússia o principal país da extinta URSS, os descendentes de russos mereciam uma avaliação especial, mais ou menos como os ridículos juízos de valor que nós mesmos fazemos entre os nordestinos e os cariocas.

Ouvi em alguma ocasião um dito atribuído ao General Douglas Mc Arthur de que o alimento da coragem é o medo e que por esta razão os soldados metidos naquele inferno da guerra dão mostras de coragem absurda. Não sei se o dito é mesmo dele e ignoro se o fato é verdade, mas certamente se aplica a papai cuja coragem era tamanha que se poderia confundir a valentia com temeridade. Não somente a coragem física, uma vez que soldados são treinados para isso, mas a audácia mental de quem joga para ganhar, sem receio de vir a perder. Um episódio ilustra isso.

Quando meu pai começou a circular em Parada do Alto, Barcelona, Votorantim, Piedade e outros locais vendendo suas roupas o clima em Sorocaba no inverno era muito rigoroso e os clientes passaram a encomendar cobertores. A medida que as encomendas aumentavam ele decidiu ir buscar os cobertores na fonte, em São José dos Campos, na Tecelagem Parahyba, que era a maior fábrica de cobertores do país e a responsável por um famoso jingle publicitário que até hoje todas as pessoas de minha idade sabem de cor. “Já é hora de dormir, não espere mamãe mandar, um bom sono prá você e um alegre despertar”.

Ele foi de trem, era o famoso trem de prata que fazia a linha São Paulo-Rio de Janeiro. Chegou de manhãzinha em S.J. dos Campos e apresentou-se à portaria da enorme fábrica, com seu terrível sotaque, querendo falar com o dono. Claro que não foi recebido. Sentou-se então, contava, na calçada em frente, pensando que em algum momento o dono deveria passar por ali. Papai era simpático e comunicativo e alguém da recepção levou a informação daquele estrangeiro com sotaque esquisito e do que ele estava fazendo e por incrível que pareça, um dos donos, Severo Gomes, que viria a ser um político famoso anos depois, foi até lá para ver a história. Não imagino como foi a conversa, mas conhecendo meu pai ele deve ter dito ao industrial que tinha força para trabalhar e juízo para não fazer besteira. Eram outros tempos. Sem ter que provar nada ele ganhou uma linha de crédito da fábrica e se tornou um dos maiores revendedores de cobertores da região, que ajudou bastante a formar o seu fundo de comércio e o progresso financeiro decorrente disso. Anos depois, ao ver o então ministro Severo Gomes na TV, comentava – foi este o homem que me ajudou sem me conhecer.

Como ele já não está mais entre nós e de qualquer forma a esta altura já não importa mais, há que destacar o assédio que meu pai sofria de suas clientes, encantadas com aquele europeu bonito, de bons modos, gentil e sempre disposto a galanteios. Eu sei que ele fez grande sucesso entre as mulheres, mas sempre foi provedor e respeitoso em casa e meus pais acabaram por ter mais dois filhos, Arkádio César, 15 anos mais jovem do que eu, e Raquel, 18 anos mais jovem, o que faz supor que papai sempre esteve em boa forma.

Sentindo o crescimento e o progresso da cidade e do estado de São Paulo de maneira geral, ele passou a investir em imóveis. Comprou dois apartamentos que mandou emendar em um só em frente ao Parque Trianon, na Alameda Casa Branca, uma travessa da Avenida Paulista, comprou um apartamento de frente para o mar em Santos, no Embaré, onde eu, garoto, tive a oportunidade de brincar uma bolinha na praia com os jogadores do ataque do Santos, Dorval, Coutinho, Mengalvio, Pelé e Pepe. Naquele tempo os jogadores de futebol não usavam brinco e nem tatuagens, não tinham “frescuras” e ficavam na praia batendo bola como qualquer mortal. Comprou ainda uma casa bem maior em uma esquina da Rua Gustavo Teixeira, em frente ao Colégio Salesiano para onde a família se mudou. Foi a nossa última residência em Sorocaba. Papai havia adquirido um enorme terreno em Itu, em uma área elevada atrás da rodoviária daquela cidade e lá construiu a mansão com que sempre sonhou. Meus irmãos Arkádio e Raquel foram criados em Itu. Ele foi estudar e morar na África do Sul, passou cinco anos no Egito e é um diretor de arte publicitário com dezenas de prêmios. Rachel mora em Israel

 

dezembro 27, 2020

MEMÓRIAS ESPARSAS DE SOROCABA - 8


        Aos 53 anos, em 2003, compulsoriamente aposentado por um câncer renal, eu me tornei escritor. Escrevi 7 livros e o primeiro deles, O caminho da felicidade, terá publicada a sua décima edição ainda neste mês de janeiro. As preciosas lições recebidas na Folha Popular, no Cruzeiro do Sul e em outras publicações nas quais tive a honra de escrever, os ensinamentos de Zé Caetano Graziozi, Sergio (Pinga) Coelho de Oliveira, Geraldo Bonadio, Guyma, Irany Caovilla, Nello Gandara e outros tantos e o rigor do Prof. Benedito Cleto na escola me trouxeram uma preciosa lição, os textos têm vida própria e uma vez liberados percorrem novos e inesperados caminhos, alterando muitas vezes a intenção inicial do autor.         Foi o que aconteceu com estas memórias. A ideia era contar a em poucas linhas os fatos mais significativos da história de papai mas sem que eu percebesse acabou-se tornando um resumo de fatos da história de Sorocaba naqueles anos dourados das décadas de 60 e 70.
        Em 1900 um físico alemão chamado Max Plank descobriu que a energia carregada por um átomo não flui de modo regular como o escorrer da água de uma torneira, mas sim aos saltos, de maneira aleatória, como quando a gente enche a mão com castanhas de caju de um pote. Porque este tipo de contagem se chama ‘quantum’ em latim (raiz etimológica de quantidade), e o plural é ‘quanta’, ele deu à ciência que criou o nome de física quântica.
        Memórias são quânticas. Vem e vão como o estouro de fogos de artifício. Um lampejo aqui, outro ali e tentamos coordenar estas lembranças para formar uma história inteligível. Então outras famílias judias vão aparecer aqui na medida em que com a ajuda dos leitores e das lembranças eu possa completar as lembranças.
        Deixei para esta postagem a citação de mais algumas famílias judaicas de atuação expressiva na sociedade sorocabana. O Sr. Bernardo Goldman e seus filhos Adolfo, Walter, Júlio e Moisés que tinham uma loja de brinquedos na Rua XV de Novembro e uma grande vidraçaria na parte baixa da Rua Brigadeiro Tobias, mais ou menos onde funciona o Liceu Pedro II. Eles suportaram financeiramente a sinagoga por muitos anos. Nunca se negaram a ajudar os patrícios necessitados, inclusive o meu pai que conseguiu com eles os recursos para a compra da primeira casa na Rua Afonso Pena, bem pertinho da vidraçaria. Tinham uma valiosa propriedade, um quarteirão, no bairro mais nobre de Campo Grande no MS, e várias vezes eu hospedei Moises (Moishe) em casa quando morava naquela Capital enquanto ele negociava o seu terreno.
        A família Epelman, o bem-apessoado casal Moisés e Genny, e o irmão Idal, eram provavelmente a família judaica mais rica da cidade, proprietários do grande estabelecimento comercial Eletrônica Paulista que funcionou na Rua Monsenhor Soares e em diversos endereços. Moisés e Genny frequentavam a sociedade sorocabana, ele foi até diretor do Sorocaba Clube que era então o reduto da elite, da alta sociedade da cidade. Houve uma grande fofoca no fim dos anos 70 que envolveu o casal e que os sorocabanos mais velhos devem recordar. Hoje em dia o fato seria uma virgula, mas naqueles tempos foi um parágrafo inteiro. Preservo a descrição do acontecido em respeito à família. A empresa foi a falência e que acabou provocando a sua mudança para S. Paulo e depois para Israel. As últimas notícias que tenho de Idal, há mais de uma década, são de um comércio de automóveis na Rua Sete de Setembro.
        E o judeu mais famoso da história da cidade, Salomão Pavlowski, hoje nome de viaduto, proprietário da Radio Vanguarda e um dos repórteres mais célebres do Brasil será objeto de um próximo post.
        Minha irmã Genia ainda é uma mulher muito bonita, mas quando jovem era lindíssima e creio que fez balançar o coração de mais de um jovem sorocabano. E não é exagero meu, tenho certeza que muitos dos leitores irão confirmar essa opinião. Ela puxou a genética de minha mãe, que aos 91 anos ainda é uma linda senhora. Desde a sua chegada à Sorocaba meu pai, apesar das dificuldades iniciais nunca economizou em nossa educação. Comprava todos os livros que desejávamos, desde brochuras até coleções, o que nos tornou, a mim e a minha irmã, fanáticos bibliófilos, pagou todos os cursos que desejávamos fazer. Ambos estudamos piano com a Profa. Mirna, fizemos inglês no Centro Cultural e participamos de tudo quando é curso que a cidade oferecia. Genia fez ballet com a Profa. Janice. Retirei centenas de volumes para leitura do Gabinete de Leitura.
        Ficaram no passado as dificuldades do menino de sete anos que ao ser matriculado no Grupo Escolar Visconde de Porto Seguro mal falava português. Eu falava íidiche e hebraico, russo com papai, húngaro como mamãe, algumas palavras de árabe com os amiguinhos da rua em Israel, com o vocabulário de uma criança de seis anos é obvio, mas português, que língua difícil, meu Senhor. A ‘tia’ Cida, minha primeira professora, e que pena que não me lembro mais do nome dela, entendendo a dificuldade me dava uma atenção especial e me proporcionou a leitura de Monteiro Lobato para crianças. Foi o alicerce de minha educação.             Costumo dizer que a base de tudo que sei e aprendi a partir daí devo à obra desse genial brasileiro, tão pouco cultuado. Já tive a oportunidade de presentear dezenas de coleções da obra de Lobato para crianças e escolas, e outros milhares de livros em ações de Rotary, em respeito a Castro Alves que prega: Oh, bendito o que semeia livros à mão cheia e manda o povo pensar! O livro caindo n’alma, é germe - que faz a palma, é chuva - que faz o mar.

dezembro 26, 2020

MEMÓRIAS ESPARSAS DE SOROCABA - 7


        O principal eixo do comércio de Sorocaba na época era a cruz formada pela Rua Barão do Rio Branco e Rua Dr. Braguinha. Numa esquina do cruzamento de ambas ficava a grande loja das Casas Pernambucas, cuja importância no comércio brasileiro era de tal monta que havia uma anedota dizendo que qualquer lugar só era realmente cidade se tivesse prefeitura, igreja, delegacia e uma filial das Pernambucas. Milhares de porteiras de fazendas em todo o país eram pintadas com o nome da loja e o digito verificador do CGC foi ampliado de três para quatro algarismos quando a empresa passou a ter mais de mil lojas.
        Os judeus de Sorocaba concentravam o seu comércio nestas ruas. No início da Barão o belo prédio dos Kaplan, da viúva Rosa Kaplan e seus filhos Marcos, o meu amigo mais antigo e Rubens, artista multitalentoso, falecido precocemente e se tornou um dos miniaturistas mais importantes do país. Eu ganhei uma miniatura dele mas nunca fui buscar e com o seu passamento ficou apenas na intenção. Passei muitas horas na minha infância no amplo apartamento que ficava sobre a loja. Ao lado a Loja Modas Rio Branco de Abrão e Bertha Ofenhejm e suas lindas filhas, Dora, que se tornou advogada e escritora de sucesso, Miriam, que estudou odontologia mas que fez carreira como muito bem-sucedida empresária e Sara, historiadora, de quem tenho poucas notícias.
        Um pouco abaixo do lado oposto, um prédio de três ou quatro andares de Salomão Zitron, um dos líderes da comunidade, cujo filho se tornou um renomado médico. Na Braguinha havia a loja de papai, a dos Mitelmão e seus filhos Sami e os gêmeos. Ao lado a loja do teatrólogo Werner Rothschild, que elevou o nível do teatro em Sorocaba. Pouco abaixo a Casa Couraça dos Kann e dos meninos Eliezer e Zevi. Próximo da ponte havia a loja dos Pinski, de Isaac e Jaime, que se tornou importante historiador e editor. Havia ainda o elegantíssimo médico Dr. Tabacow, que não frequentava a sinagoga, mas atendia a comunidade em domicílio. Havia ainda outras famílias como a do Dr. Saul Gun, cujo filho Luís Gustavo salvou a minha vida diagnosticando e operando um câncer no rim e algumas que vinham da cidade de Itu. As festas na sinagoga eram frequentes, alegres e cheias de comida deliciosa.
        Aos 70 anos minha memória já anda funcionando aos trancos, como um carro com motor cansado. Perdi muitos detalhes daqueles tempos e se algum leitor, meu contemporâneo, puder me auxiliar corrigindo minhas lembranças ou fornecendo maiores detalhes ficarei muito agradecido.
        Toda a vida da comunidade girava em torno da pequena e estreita sinagoga, que ficava em uma travessinha, Rua D. Pedro II, que sai defronte à antiga Prefeitura, atual Teatro Municipal, e termina na própria Dr. Braguinha. Hoje creio que ela não existe mais, mas apenas como curiosidade conto uma história que ouvi do próprio participante, Marcos Kaplan, que era há alguns anos o presidente da Sinagoga. O telhado desgastado pelo tempo do velho prédio havia caído, e o orçamento para a reparação ficava em trinta mil reais. Marcos tirou diversas fotos do estrago e foi procurar o bilionário mecenas Samuel Klein em S. Caetano do Sul, o dono das Casas Bahia. Apresentou-se, exibiu as fotos e pediu a ajuda possível. Klein disse à secretaria: - traga trinta mil em um envelope. Enquanto isso acontecia Marcos perguntou: - O senhor quer um recibo? A resposta foi: - Se eu precisar um recibo da sinagoga eu não dou dinheiro algum. Ao abrir o envelope ele continha trinta mil dólares. Marcos chamou a atenção para o engano, e a resposta foi: - Tudo certo. O senhor vai embora e arruma o prédio. Meu falecido cunhado Horácio Grobman me contou outras histórias sobre a generosidade de Samuel Klein.
        O comércio na cidade crescia de forma extraordinária e meu pai foi muito bem, o que lhe permitiu adquiriu um sobrado na Rua Humaitá, em região nobre da cidade, onde tivemos vizinhos ilustres como o Dr. Luís Garcia Duarte, medico renomado e governador do Rotary e seu filhos João Luís, que se tornaria médico também e Sandra, a menina mais bela da redondeza, que todos sonhávamos namorar. Éramos vizinhos também do Manoel Beldi Castanho, que se tornaria o dono do melhor SPA do Brasil, e os Cacace, Fábio, restaurador, artista plástico e músico, José Cláudio, Danilo e Regina que se tornaram meio que extensão de minha família. Bem próximo morava a família de Leila e Benedito Puglia Camargo, e seus filhos Lélia e Celso, uma das famílias que mais amei na vida. Como eu já disse acima, a memória de tantas outras pessoas tornou-se fugaz.        
        Papai comprou um Opala azul bebê novo em 1968, ano do seu lançamento. Era lindo e foi o carro no qual aprendi a dirigir à custa de derrubar o muro do vizinho da frente. Era o carro mais luxuoso da rua o que mostra a evolução do imigrante que 20 anos antes havia chegado com as mãos abanando e recomeçado a sua vida como camelô. (Na foto a casa da Rua Humaitá)

dezembro 25, 2020

MEMORIAS ESPARSAS DE SOROCABA - 6

 

Minha mãe Irena era filha de criação de uma família de fazendeiros da aristocracia húngara. Na terrível pobreza dos anos depois da Primeira Guerra Mundial, no destruído e desmembrado Império Austro Húngaro só havia dois tipos de cidadãos, aqueles que possuíam terras e os que trabalhavam na terra e lutavam arduamente para apenas sobreviver. Uma filha inesperada para quem já sustentava família era um ônus insuportável e a menina foi dada para o idoso casal fazendeiro criar. Era a alegria da casa e foi criada como uma princesinha, até a sombria época da Segunda Grande Guerra, quando os pais de criação faleceram, a fazenda foi tomada e a menina expulsa para se virar como pudesse. Ela tinha pouco mais de treze anos.

A saga dos anos passados dormindo aonde dava e comendo aquilo no que pudesse botar a mão são suficientes para outra história. Mas um dia, por uma destruída estação de estrada de ferro na Hungria passava uma tropa russa a caminho da Alemanha, e a garota, então com dezesseis para dezessete anos pediu comida a um garboso capitão. Ficaram juntos pelo resto da vida. Era 1944 e os soviéticos por um lado, a partir da Europa Oriental e os aliados por outro, a partir da França, avançavam fechando o inimigo como os braços de uma tesoura, rumo à Alemanha, que a esta altura já estava desarticulada, apenas recuando e se defendendo, mas ainda lhe restavam bons combatentes dando muito trabalho às tropas que avançavam. E já bem próximo da Alemanha, quase ao final do conflito, papai foi ferido por um estilhaço de granada na perna esquerda, que lhe deixou profundas cicatrizes. Ele foi tratado em um hospital em solo germânico, e minha mãe também foi internada no mesmo hospital para ser tratada por desnutrição.

Estando ambos recuperados tomaram consciência que a Alemanha não era um bom lugar para se viver, especialmente para um militar russo e judeu. Voltar para a URSS era uma opçáo ainda pior.

Paris era ainda a capital cultural do mundo. A ocupação da França produziu o roubo de milhares de obras de arte que desfalcaram os tesouros do país, mas a consciência dos comandantes da ocupação alemã preservou a cidade- ícone de destruição ou de bombardeios e a Cidade Luz rapidamente atraiu milhares de pessoas querendo refazer sua vida. Como já contei, papai foi trabalhar como auxiliar de cozinha em um restaurante russo e nunca mais esqueceu de como fazer deliciosos “borscht” a sopa de beterraba com creme de leite que é a marca registrada da culinária da Ucrânia e “pirozhki”, o bolinho assado de repolho, uma delícia, entre muitos outros pratos. Ele cozinhava muito bem,

Mamãe foi trabalhar em um “atelier” de costura e rapidamente retomou os modos e a elegância com que havia sido criada. E daí para a frente, pelo resto da vida, (e até hoje, aos 91 anos), ela não andava, mas desfilava, com luvas, chapéus e as roupas que ela mesmo fazia ou reformava. Na Sorocaba dos anos 60 e 70 era um espetáculo que os vizinhos e conhecidos gostavam de admirar, ver a Dona Irena, garbosa e linda como uma princesa, indo comprar pão na padaria.

A cidade de Sorocaba crescia de maneira acelerada. O censo de 1970 lista a cidade em 9º lugar no Estado de SP, com pouco mais de 175.000 habitantes. E os negócios de meu pai cresceram também. Ele alugou um sobrado do Eng. Wilson Kalil na Rua Dr. Braguinha, uma das principais artérias comerciais da cidade, onde montou a loja Modas Braguinha, e fomos morar no andar de cima do sobrado. Mas a despeito de possuir agora um comércio, do qual a minha mãe ficou encarregada, nunca deixou de trabalhar, agora com a Rural Willys lotada de mercadorias, vendendo de porta em porta. Dobrava o expediente quando voltava para a loja para lançar as vendas, fazer o caixa, preparar as comprar e separar as mercadorias que levaria no seguinte para a Rural. 

dezembro 24, 2020

MEM[ORIAS ESPARSAS DE SOROCABA - 5

 Meu pai não gostava de falar sobre a sua família e muito menos ainda sobre os tempos da guerra. Ao longo de muitos anos fomos arrancando alguma informação, aqui e ali, sobre tais assuntos, especialmente a Alice, com quem ele gostava de conversar quando estava já nos seus últimos anos morando na casa de minha irmã.

Nós não podemos imaginar os horrores da guerra vendo os filmes de cinema e televisão. A dor, o sofrimento e a barbárie excedem a prodigiosa imaginação dos roteiristas. Papai esteve durante cerca de três anos na defesa de Leningrado ante a tentativa das tropas alemãs de destruição da cidade. Quase um milhão e meio de habitantes morreram durante o cerco, milhares deles de fome. Tornaram-se habituais casos de roubo de cartões de racionamento (a ração era 250 grs. de pão por dia) e até mesmo de canibalismo. Nenhum animal sobreviveu, cavalos, cães, gatos, pombos, todos viraram comida. O frio absurdo fazia com a cidade fosse sendo queimada casa por casa para aquecer os sobreviventes, fantasmas esfomeados que vagavam trôpegos, em andrajos, pelas ruas congeladas. E o exército alemão bombardeava continuamente sem alvo determinado, valia destruir qualquer coisa.

Um hospital que tinha dezenas de crianças feridas internadas, muitas em estado grave, foi bombardeado. As crianças sobreviventes encontravam-se em estado desesperador e não havia para aonde levá-las, não havia comida, não havia medicamentos, ninguém queria recebê-las em casa, a temperatura era de cerca de trinta graus negativos e não havia agasalhos. O General Georgy Zhukov, que comandava as tropas soviéticas, confrontado com o problema reuniu seus oficiais, expos o problema e pediu sugestões. A decisão foi matar as crianças para que tivessem uma morte menos dolorosa do que abandonadas ao relento, à fome, ao frio e à dor dos seus ferimentos. Oficiais cumpriram a ordem chorando. Papai se negou a isso, mas assistiu e nunca mais se esqueceu. Foi um fantasma que o acompanhou pelo resto da vida.

Ele não gostava de ver filmes de guerra na TV, dizia que era tudo fantasia. Mas lia os jornais diariamente, principalmente o Estadão e acompanhava os noticiários na TV. Sabia tudo o que acontecia no mundo. Era a época da guerra fria e ele dizia que os ocidentais não entendiam a dissimulada mentalidade soviética, de como eles inventavam mentiras nas quais eles próprios passavam a acreditar e na extrema agressividade e valentia de um povo que descendia dos vikings e se estabeleceu em uma das mais inóspitas regiões do mundo. O nome Rússia, vem do nome do chefe viking Rus, que saqueou Constantinopla no século IV e criou naquele remoto local o que viria a ser este país.

Ele adorava o Brasil e se revoltava quando um brasileiro falava mal do país. E com seu sotaque carregado dizia: - o senhorrrr sabe quando frrrango fica congelado no geladeirrra, como pedrrra. São quatrrrro graus menos. Lá no Russia é trrrrinta graus menos. Senhorrrr vai prá la verrrr se é melhorrr.

Da sua família eu soube apenas que teve irmãos e irmãs e uma pequena foto desbotada de uma gorda matrona que o acompanhou pela vida toda seria de sua mãe, minha avó, Ita ou Ida, eu nunca soube o certo. De quem teria sido meu avô eu nunca ouvi uma palavra sequer.

Como todos os militares era extremamente disciplinador e rigoroso com os filhos, mas sabia ser carinhoso e gentil do seu modo. Muitas vezes minha irmã e eu dormimos com ele coçando as nossas costas. 

dezembro 23, 2020

MEMÓRIAS ESPARSAS DE SOROCABA - 4


        Em 1957, quando chegamos a Sorocaba, esta era uma das maiores cidades do Estado de S. Paulo, com cerca de 130.000 habitantes e uma florescente vocação industrial, especialmente na indústria têxtil. Era a capital dos tecidos de linho produzidos principalmente pelas indústrias têxteis Barbero e Metidieri, mas havia muitas outras, a fábrica N.S. da Ponte, que foi a primeira da cidade, também conhecida como Fonseca, a enorme CIANÊ, Cia Nacional de Estamparia, a Fábrica de Tecidos Santa Rosália, a Fábrica Santo Antônio, etc., e indústrias pesadas como a Fábrica de Cimento Santa Helena do grupo Votorantim, a Fábrica de papel Votocel e de maneira pioneira no Brasil havia centenas de faccionistas produzindo peças acabadas em linho e algodão que eram vendidas em lojas de fábrica e por outros revendedores em todo o país. Havia ainda as gigantescas oficinas da Estrada de Ferro Sorocabana, talvez o maior empregador da cidade.         Era uma cidade próspera, com pleno emprego e uma renda bastante razoável na medida que os salários da época compravam proporcionalmente mais do que os atuais.
        Com um pequeno capital emprestado pelo Sr. Teperman, pago integralmente pouco tempo depois, papai comprou a “clientela” e uma pequena quantidade de mercadorias, que na época eram chamadas de “roupas feitas”, uma novidade porque até então grandes redes de lojas de tecidos como as Pernambucanas, Buri e outras menores vendiam os panos que eram costurados em casa para fazer as roupas. A roupa feita libertava a dona de casa para outras atividades e foi muito bem aceita pelas famílias. Meu pai, baixinho, mas atarracado e muito forte, saía a pé carregando duas pequenas malas e visitando sua clientela. As vendas e pagamentos eram anotados em cartões e até onde eu sei, naquele tempo em que a palavra valia mais do que o temor do SPC, ele nunca levou um calote.
        Em pouco tempo o dinheiro ganho deu para comprar uma charrete e um cavalo, e o cavalo voltou às nossas vidas. Morávamos então numa pequena ladeira chamada Rua Afonso Pena, em uma casinha de vila geminada com outras tantas, onde fiz amigos que tenho até hoje. O cavalo era guardado nos altos da Av. Barão de Tatuí, hoje uma das principais artérias da cidade, no local onde se situa mais ou menos o atual shopping no Campolim, que naquele tempo não era mais do que uma vasta pastagem. Papai saia a pé por volta das quatro da manhã para atrelar o cavalo à charrete, chegava em casa por volta das seis para carregar as mercadorias na carroça, levava uma marmita ou um pedaço de pão com salame e queijo embrulhado em um pano de prato e se dirigia aos bairros mais distantes onde aumentou exponencialmente a sua clientela. As pessoas adoravam aquele “russo” simpático e bonachão, risonho e bem-humorado, com forte sotaque e sempre disposto a um café, um trago e uma piada. Muitas vezes, nas minhas férias, saí com ele. Ao escurecer levava o cavalo e a charrete de volta ao pasto, lavava o animal e voltava a pé para casa.
        As pessoas passaram a fazer encomendas de coisas mais dispendiosas, roupa de cama e mesa, ternos e vestidos, enxovais para casamentos e meu pai ia buscá-las em S. Paulo, onde angariou vasto crédito. Ele comprava as mercadorias, o vendedor anotava em um pedaço de papel de embrulho, geralmente rosado e enfiava em um espeto. Um mês depois, ao retornar meu pai pedia a conta, o lojista tirava o papelzinho do espeto e era pago em dinheiro, uma boa soma que meu pai carregava consigo sem preocupações. Vi isso acontecer muitas vezes. Não havia nota fiscal, duplicata, promissória, recibo, nada, a não ser a valiosa palavra empenhada por dois comerciantes honestos.
        Os negócios cresceram e o cavalo e a charrete foram finalmente substituídos por um jipe Land Rover, barulhento e duro, que recordava ao meu pai os veículos utilizados na guerra. Pouco depois, pela recém lançada perua Rural Willys, azul e branca, que ele tirou “O KM” da concessionária e que ficou com ele por muito tempo.