Origem dos Collegiuns
As fratrias gregas evoluíram para um
tipo muito peculiar de organização, do qual viria a sair, em certo momento
histórico, os chamados Collegia Fabrorum romanos e, mais tarde as associações
obreiras conhecidas como Corporações de Ofício, ou guildas.
Isso ocorreu como resultado de um longo
processo de adaptação à realidade histórica, cuja descrição não cabe nos
limites estreitos deste trabalho, mas é importante ressaltar que a história da
sociedade humana e das ações que se promovem para edificá-la não estaria completa
sem uma alusão, ainda que de passagem, por esse importante tipo de organização
que o mundo antigo produziu.
Essas duas fontes de
influência da Maçonaria tiveram, portanto, uma origem comum e não é
estranha a similitude de objetivos e a identificação cultural que muitos
historiadores enxergam entre as duas instituições.
Praticamente, a maioria das instituições
gregas desse tipoeram organizadas em torno do culto de um deus ou de um herói local. A religião
era assunto do Estado e assumia sempre a forma política da cidade-estado que a
professava. E esta refletia a política da classe dominante, ou seja, tinha como
núcleo o interesse das fratrias que estavam na base dessas sociedades.
Consequentemente, os cultos eram
organizados em torno de seus deuses favoritos e heróis pessoais, os quais, de
algum modo estavam conectados com a origem dessas famílias. Assim se justifica
a moldura lendária que geralmente envolviam esses cultos.
Um desses exemplos é o sempre citado
Mistérios Órficos, nos quais se cultuava o deus Bacco. Registros da realização
desses rituais em várias cidades gregas já são encontrados em obras do século
II a.C, mostrando a antiguidade dessas manifestações culturais,Politica e Religião eram atividades
estreitamente ligadas na vida das antigas cidades. Dada a forma colegiada em
que os cultos eram praticados, entende-se porque também o exercício da política
acabou se aproveitando dessa formulação.
Mas não só a política e a religião. As
pessoas formavam colegiados para defender interesses comuns, para partilhar
idéias e crenças, para defesa própria e quaisquer outros assuntos que
demandasse organização e participação coletiva. Nessa conformação podemos
identificar também a origem dos partidos políticos e grupos de pressão.
Há registros da existência desses
colegiados já na época de Péricles, e segundo se infere desses mesmos
registros, eles não mantinham uma convivência pacífica com o famoso líder
ateniense. Isso é tão verdadeiro que ele emitiu decreto regulamentando a forma
e o número dessas fratrias, disciplinando a legislação que já lhes deixara
Sólon. Plutarco relata que em 404 a.C. após a vitória de Esparta sobre Atenas,
na Guerra do Peloponeso, um grupo formado por essas fratrias derrubou o regime
democrático de Atenas e governou a cidade durante um ano. Esse episódio ficou
conhecido como o governo dos Trinta Tiranos.
Também no Egito existiram colegiados com
essa característica. Eles se tornaram comuns especialmente entre os adoradores
de Ísis. Apuleio de Madaura, historiador do primeiro século antes de Cristo,
menciona a existência dessas organizações em datas anteriores ao ano 79 a.C.,
dando a entender que elas já existiam há vários séculos. Esse historiador
refere-se também à organizações semelhantes, formadas por trabalhadores da
construção civil e metalúrgicos, sendo encontrado registros da existência
dessas instituições em vários territórios de colonização helenica,
especialmente na Ásia Menor. Tomando a forma, ora de grupos religiosos, ora de
partidos políticos, clubes funerários, grupos culturais, associações
profissionais e afins, essas organizações dominaram um vasto aspecto da vida
cultural das antigas sociedades.
Os collegiuns romanos
Mas foi durante o Império Romano que
essas organizações assumiram sua maior importância. Na história de Roma
encontram-se registros da existência de entidades semelhantes desde o tempo da
monarquia. A tradição sustenta que foi um dos primeiros reis de Roma, o
lendário Numa Pompílio, o fundador da primeira organização com o nome de
Collégia Fabrorum. Dizia-se que nas famosas Doze Tábuas, primeira legislação
escrita que Roma teve, já havia menção a essas organizações.
Mas mesmo em Roma parece que a vida
dessas associações, especialmente as que se dedicavam ao culto religioso, não
se desenvolveu de forma muito pacífica. Vários registros históricos dão conta
de sucessivos conflitos entre esses grupos e as autoridades, resultando, em
diversas oportunidades, em leis restritivas, ora proibindo, ora regulando suas
atividades.
Na época de Nero, por exemplo, eram
tantas as organizações desse tipo que ele foi obrigado a emitir uma série de
regulamentos para controlar a atividade delas nas várias cidades do Império. Nessa
época elas já haviam assumido o formato e nome pelo qual ficou conhecido, o de
Collegia Fabrorum.
Os imperadores romanos usavam a
legislação reguladora de atividades religiosas, sociais, profissionais e outras
para controle do Estado. Assim, a legislação que regia a vida de um Collegium
era bastante severa. Seus membros só podiam ser admitidos por hereditariedade.
Um rígido controle de mudança de um colegiado para outro era mantido.
Licenças de trabalho eram controladas
pelo Estado através dessas organizações. Dessa forma o governo exercia o
monopólio de toda a atividade econômica no Império através desses colegiados.
Como essas atividades envolviam principalmente o comércio, a indústria, a
prestação de serviços, as forças armadas e política, os quatro grandes
pilares do Estado, pode-se dizer que o Império Romano era uma verdadeira
ditadura, rigidamente controlada por uma enorme máquina burocrática da qual
nenhum cidadão lograva escapar
Mas mesmo sob a rígida disciplina
imposta pelas autoridades é certo que organizações clandestinas, formadas para
vários propósitos proibidos pela lei existiam em todos os territórios do
Império. A maioria delas era composta por seitas religiosas secretas e
proibidas, que causavam muita dificuldade para as autoridades. Atas de
tribunais que resistiram ao tempo registram vários julgamentos e sentenças de
membros desses colegiados ilegais, os quais eram punidos com pesadas multas, e
muitas vezes pagavam com vários anos na masmorra pela sua ousadia.
Um recenseamento feito durante o governo
de Marco Aurélio revelou a existência de mais de duzentos e cinqüenta
organizações desse tipo, licenciadas em cerca de setenta e cinco cidades do
Império. Só na cidade de Roma, cerca de oitenta tipos de profissão tinham seus
estatutos e regulamentos registrados e reconhecidos por lei. Acredita-se,
porém, que existiam muito mais, mas como se tratavam de organizações
consideradas plebéias, a maioria dos escritores – patrícios por tradição -
pouco se ocuparam delas, o que nos deixa com pouca informação a respeito.
Isso era normal entre os escritores da
antiguidade e também da Idade Média. Poucos se aventuraram a escrever sobre
assuntos populares. A vida social do homem comum era de somenos interesse para
eles, de maneira que a literatura desses tempos, e até a Idade Moderna, sempre
versou mais sobre a vida da nobreza, com seus lordes, cavaleiros, reis e
príncipes, descrevendo suas venturas e desventuras, como se só interessasse a
vida dessa classe da sociedade. Essa é a razão de encontrarmos tão poucas
referências às classes trabalhadoras e suas organizações nos compêndios de
História antiga.
A estrutura dos Collegiuns
A maioria desses colegiados, em
princípio, eram fratrias organizadas com o propósito de garantir
sepultura digna para os ancestrais. Daí o fato de o direito de propriedade, em
Roma, evoluir a partir da luta do clã pelo direito de manter a posse dos seus
lugares sagrados, ou seja, o local de sepultura dos antepassados. Essas
associações eram conhecidas pelo nome popular de teuinorum collegia,
ou grupos funerários. Cada um desenvolvia suas próprias preces e rituais,
praticados nos templos familiares, onde se realizavam as exéquias dos mortos e
se construía para ele uma rica história de vida, que não raramente se
transformava em lenda e objeto de culto do grupo.
Com o tempo, muitos desses grupos
contruiam um colum-barium, que era uma espécie de galeria de
antepassados famosos, ou mausoléu, no qual se prestava o culto a eles como
deuses lares, os famosos manes.
Diferente dos egípcios, que acreditavam
na morte como uma forma de ascender de posição social, desde que conquistassem
o beneplácito dos deuses e conseguissem vencer a terrível jornada pela terra
inóspita da Tuat, para os romanos a morte era um evento terrivelmente constrangedor,
principalmente se o indivíduo fosse pobre e não pudesse ter uma sepultura
digna. A religião romana ensinava que uma pessoa sem sepultura digna se tornava
uma alma errante, sem paz nem descanso. Isso porque a ventura da alma dependia
estreitamente do culto que seus descendentes viessem a lhe prestar. Assim
nasceu entre os romanos a tradição de construir monumentos funerários
suntuosos, próprios para a adoração do indivíduo depois de morto. Quem não era
rico e não podia arcar com os custos de sepulturas suntuosas juntava-se a um
colegiado funerário para, pelo menos, garantir para si mesmo um túmulo decente.
É difícil para um homem de mentalidade
moderna aquilatar a importância dessas tradições para os povos da antiguidade.
Mas elas estavam no cerne da própria estrutura dos Estados antigos,
regulamentadas em leis, sustentadas pelo próprio aparato de segurança. Mas não
deve soar estranho ao maçom que conhece bem a liturgia dos ritos maçônicos,
pois essa vinculação com os cultos mortuários é uma intercorrência muito comum
na prática maçônica.
É fato histórico bastante conhecido que
os primeiros agrupamentos cristãos não tinham a simpatia das autoridades
romanas. Que suas reuniões e os locais onde se agrupavam para praticar seu
credo muitas vezes eram varejadas pelas autoridades policiais e seus
praticantes presos e até condenados á morte.
Assim, é bem possível que muitos grupos
cristãos tenham sido organizados como sociedades funerárias para fugir à
repressão oficial. Destarte, muitas igrejas cristãs tiveram origem nessas
fratrias funerárias, pois de outra forma elas seriam perseguidas.
Mas nem todos os Collegia Fabrorum se
ocupavam de assuntos religiosos. A grande maioria era organizada para tratar de
assuntos profanos. Arte, profissões, interesses comerciais, políticos, sociais,
tudo era motivo para a fundação de um collegium. Era o que podemos
chamar hoje de ONGs, com seus estatutos próprios e suas regras de participação.
Cada tipo de profissão tinha a sua. Desde os pescadores, aos advogados, padeiros,
cozinheiros etc.
No que respeita à Maçonaria é importante
registrar que os pedreiros e arquitetos tinhma também os seus collegiuns e
gozavam de especiais favores e privilégios, pois se tratava de profissão que
muito interessava ao Estado. O grande orador Cícero, em um de seus discursos,
se refere à honorabilidade da arte da arquitetura e à nobreza dos seus
praticantes.
Os Collegia Fabrorum eram entidades com
estruturas administrativas bem definidas e organizadas. Praticamente todas as
organizações desse tipo tinham a sua cúria. Nela havia um magistrado, ou
curador (praesidis), o qual era eleito entre os membros do colegiado
conforme os critérios definidos pelos seus estatutos. Geralmente, dois oficiais
também eram eleitos na mesma ocasião para servirem como secretário e
tesoureiro ( questores e decuriões).
As leis que regiam o colegiado eram
votadas pelos membros de cada sociedade, mas tinham que se conformar à
legislação imperial específica que regia esse tipo de sociedade. Semelhante ao
que rege hoje o Código Civil, com respeito á constituição e administração de
uma ONG, assim também eram os estatutos imperiais que regulavam a vida dessas
sociedades.
Os membros desses colegiados pagavam uma
taxa que servia para a constituição de um fundo comum. Esse fundo servia para
pagar as taxas exigidas pelo Estado, as despesas da sociedade com reuniões,
banquetes e eventuais obras sociais que a organização viesse a atender. Havia
também o atendimento das necessidades pessoais dos membros do grupo, quando
dela necessitavam, em face de um acidente, uma demanda jurídica, ou outro
problema qualquer que demandasse a ajuda dos membros da organização.
Uma fonte de financiamento dos Collegia
Fabrorum era o mecenato. Raro era o collegium que não tinha um
patrono. Geralmente era uma pessoa de altas posses, homem ou mulher, que ofertava
generosas somas de dinheiro em troca do poder de decisão sobre as atividades do
grupo. Isso lhes granjeava poder político e não era raro encontrar um político
à testa de um collegium.
Em sua estrutura organizacional, os
Collegia Fabrorum copiava, tanto quanto era possível, a organização hierárquica
existente na própria sociedade romana. Havia muitos graus de subordinação na
escala hierárquica dos Collegia, que admitia tanto pessoas livres como
escravas, desde que seus senhores dessem o seu consentimento para que
participarem da organização.
Não raro esses collegiuns desenvolviam
seus próprios rituais de iniciação, transmissão de ensinamentos e elevação de
posição hierárquica dentro do grupo. Esses rituais envolviam sempre elementos
religiosos e apelos á tradição das famílias que faziam parte da organização.
Os Collegia Fabrorum e a Maçonaria
Nenhuma história da Maçonaria seria
completa sem elencar os Collegia Fabrorum entre suas fontes de influência. É
evidente que existem consideráveis diferenças entre aquelas associações e as
Lojas Maçônicas tais como as conhecemos hoje e mesmo como possivelmente
funcionavam na Idade Média e início da Idade Moderna. A similitude aqui é em
nível de aproximação entre objetivos, funcionamento e estrutura, já que tais
colegiados incorporavam muitas práticas análogas ao que temos hoje na
Maçonaria.
Alguns historidores tem reivindicado uma
ligação direta entre os Collegia Fabrorum e a Maçonaria citando a organização
conhecida no mundo romano como Colégio dos Artífices de Dionisio. Essa
organização, supostamente teria sido uma herdeira dos antigos construtores, que
desde a construção do Templo de Salomão continuavam preservando os segredos
místicos da arte de construir.
Essa hipótese busca confirmação na já
bem conhecida teoria Comacine, segundo a qual alguns egressos desse grupo de
arquitetos, fugindo das invasões bárbaras, se asilaram em um mosteiro próximo
ao Lago Como na Itália, e ali sobreviveram vivendo como monges, preservando
esses segredos por séculos até que os povos da Europa começaram novamente a
reconstruir suas cidades. Então esses arquitetos comacinos serviram de mestres
para esses novos maçons, que viriam a ser os antecessessores dos nossos irmãos
operativos medievais. Segundo essa teoria, os comacinos, agindo como
missionários cristãos, fundaram escolas em vários. países europeus,
principalmente nas Ilhas Britânicas, na França e Alemanha, onde seus
ensinamentos prosperaram com maior vigor.
Por fim cabe citar aqui a teoria
proposta por Robert F.Gould em sua História da Maçonaria (Londres, 1727).
Segundo esse autor os Collegia Fabrorum entraram nas Ilhas Britânicas através
dos exércitos romanos, que deles necessitavam para construir e reconstruir as
cidades que eram destruídas na guerra de conquista. Quando os romanos foram
enfim expulsos da ilha essa instituição tipicamente romana foi recepcionada por
seus sucessores anglo-saxões na forma de guildas formadas pelos profissionais
dos mais variados serviços, entre eles, o mais importante, os pedreiros profissionais.
Essa teoria tem vários seguidores e
apresenta uma certa lógica confirmada pela História da civilização nas Ilhas
Britânicas. Todavia, há bem pouca documentação que a confirme.
Há também quem acredite que os Collegia
Fabrorum tenham, de algum modo, sobrevivido no Império Romano do Oriente,
através das guildas dos construtores bizantinos. Sua influência se fez sentir
na Europa, servindo de núcleo para a fundação das guildas européias. Teriam
sido, segundo essa crença, um importante elemento de influência na chamada
Renascença, através principalmente das suas ligações com um famoso grupo de
arquitetos florentinos. Foi a partir deste último grupo, aliás, que teria
surgido a chamada Maçonaria Especulativa.
Evidentemente, a existência dos Collegia
Fabrorum não explica, por si só a origem da Maçonaria, como também os Antigos
Mistérios, nem as guildas dos antigos construtores medievais. Todas essas
organizações e manifestações culturais constituem ligações que podem ser
estabelecidas com maior ou menor grau de certeza, porém nenhuma delas pode ser
efetivamente eleita como a legítima antecessora da Maçonaria. A verdade é que a
Maçonaria, como todo arquétipo que habita no inconsciente coletivo da
humanidade, não tem, como os demais institutos que moldam o espírito humano,
uma fonte única de referência.
Da mesma forma que os Mistérios, as
Guildas Medievais, as Sociedades religiosas dos judeus, as seitas gnósticas e
os diversos clubes e agrupamentos de defesa de interesses mútuos que já se
formaram no mundo, em todos os tempos, os Collegia Fabrorum ocupam um lugar
proeminente nessa eterna luta em que o espírito humano se empenha, com o
objetivo de organizar suas sociedades. A idéia de agrupar-se, de procurar
juntar-se aos seus iguais é uma necessidade que o homem tem procurado suprir
desde a aurora da sua existência. Ninguém consegue vencer sozinho os desafios
que o mundo nos coloca. Por isso é que nos reunimos em grupos. Essa á a forma
de colocarmos ordem no caos (Ordo ab Chaos), missão que o Grande Arquiteto do
Universo nos confiou.
Por isso a história da Maçonaria é a
história do sentimento de cooperação. É a história da Irmandade. Seja ela
ligada por laços de uma mística idéia de que um dia essa união já existiu em
seu estado mais perfeito, e que se pode recuperá-la pelo espírito da egrégora,
ou simplesmente pela cultura pura e simples das virtudes que tornam a vida
social mais feliz, essa é a esperança e o objetivo de toda Irmandade.
João Anatalino