Os Maçons que levam o simbolismo ao pé da letra, pouco versados na arte da simbologia, riem do Reverendo James Anderson (1680- 1739) por causa da suposta frase: “Adão foi o primeiro Maçom, iniciado por Deus no paraíso”.
Se lermos o texto original da Constituição de Anderson, publicada em 1723, veremos que o autor escreveu o seguinte:
“Adão, o nosso primeiro Antepassado (first Parent), criado a partir da Imagem de Deus, o Grande Arquitecto do Universo, deve ter tido as Ciências Liberais, especialmente a Geometria, escritas no seu Coração (written on his Heart), pois mesmo depois da Queda encontramos os Princípios delas nos Corações dos seus descendentes; e que no decorrer do tempo (in process of time) têm sido depurados em convenientes Métodos de Proposições mediante a observação das Lei das Proporções…”
Não podemos perder de vista que o escocês James Anderson era mestre em artes e doutor em teologia – um Reverendo Pastor que em Londres foi Ministro das Igrejas Presbiterianas da Glass House Street e da Lisle Street Chapel até à data da sua morte. Quando ele redigiu a Constitution, tinha a colaboração do francês Jean Théophile Desaguliers e certamente alguns textos foram compilados sob a sua supervisão. Desaguliers era filho de um pastor huguenote (calvinista francês) refugiado em Inglaterra. Foi membro da Royal Society de Londres, assistente de Isaac Newton, professor de filosofia e inventor do planetário. Foi também o terceiro Grão-Mestre da Grand Lodge of England um dos pais da moderna Maçonaria. Assim, a Grande Loja de Inglaterra teve por primeiros doutores e fundadores um escocês e um francês, nacionalidades rivais da Majestade Britânica.
Portanto, rir de Anderson é rir também do douto Desaguliers, um apanágio só dos que estão à altura dos graus académicos que o Reverendo possuía e do prestígio da Royal Society.
Os estudos de simbolismo e o da simbologia parecem ser a mesma coisa. Mas são diferentes, tanto pelo objectivo quanto pelo método. Os entendidos em simbolismo restringem-se à expressão e à interpretação dos símbolos. A simbologia, por seu turno, estuda esses mesmos factos através da visão mais aprofundada do humanismo.
Partamos, então, do princípio (ou hipótese) de que as ordens iniciáticas têm por objectivo despertar o potencial interior do homem e auxiliá-lo na redescoberta da sua relação com o Cosmos.
“Mas isso é esoterismo!” – gritarão os afoitos.
SIM, meus caros watsons: é esoterismo SIM, – no bom sentido – ou vocês já se esqueceram que esse “tal esoterismo” fazia parte do pensamento iluminista do século XVIII? “Grande Arquitecto do Universo”, por exemplo, é uma expressão trazida para a Maçonaria pelos místicos e esotéricos de influência pitagórica. E outros penduricalhos, como os “três pontinhos” depois das assinaturas, a “cadeia de união”, o uso de incensos, etc.. “Foi a partir da segunda metade do século passado (mais ou menos de 1950 para cá) que o esoterismo se misturou com mistificação, magia, feitiçaria e outras maluquices que prefiro chamar de “esquisotéricas”.
Consideremos, portanto, – e na mesma linha de pensamento das religiões e da moderna Psicologia – que cada pessoa seja “portadora” de arquétipos (modelos inconscientes ou representações) que promovem (ou retardam) a evolução da consciência – noutras palavras: consideremos que “num lugar escondido” da consciência existam modelos ou exemplares originais e transcendentes funcionando como leis escritas no nosso “Coração”. Pensem nisso e entenderão porque nada há de cómico ou risível na afirmação (simbólica) de Anderson. Pelo contrário: trágica seria a perspectiva de que o homem fosse um vazio destituído de qualquer base sobre a qual pudesse alicerçar o templo interior. É trágico, mas já se tornou realidade nos dias de hoje: a maçonaria praticada nas nossas Lojas tem um viés predominantemente material: é céptica e crua, o oposto do que se poderia esperar de homens convictos na existência de um Ser Supremo ou na preexistência da Alma (não estamos a tratar de reencarnação, mas de “preexistência da Alma”).
As etapas para se alcançar o conhecimento partem daquilo que vem antes (“a priori”) e são, no caso da afirmação de Anderson, uma anterioridade sustentada nas noções de:
-um Mestre Primordial (Deus ou a representação mental de Deus);
-a transmissão de potencialidades básicas (iniciação);
-um recipiendário (Adão ou, se preferirem, os nossos primeiros pais – first parent segundo Anderson);
-uma escola (templum – paraíso primordial) preparado para o remoto cerimonial (não estamos a tratar da “iniciação”
-como ritual de admissão na Maçonaria, mas da “Iniciação da Alma”).
Quem estuda simbologia terá de reconhecer na afirmação de Anderson estes quatro pontos necessários para a comunicação do pensamento abstracto sob forma figurada – uma ciência livre (liberal science), em especial as justas e perfeitas proporções (Geometria), gravadas no seu íntimo (o “Coração”).
O Adão a que Anderson se refere é o admah hebraico ou “criatura feita da mãe-Terra”. O Deus Iniciador é o Inefável (que convencionamos chamar “Grande Arquitecto do Universo” por influência dos místicos pitagóricos, como já dissemos acima). A comunicação (iniciação no paraíso) deve ser compreendida mediante vários aspectos:
-no primeiro estágio da inteligência, o objecto comunicado passa pelas funções psíquicas da percepção e do julgamento: “vejo isto; isto é bom ou é mau” – alegoria da árvore do conhecimento do bem e do mal
-No segundo estágio ocorre a decomposição do objecto através da razão – “o que é isto? como é isto?”
-No terceiro estágio acontece a transcendência pela contemplação e iluminação (plenitude) – é o “daqui para onde”.
A Maçonaria Real trabalha estes três estágios nos três graus do simbolismo: Aprendiz, Companheiro e Mestre. Se o Maçom não consegue conceber o conhecimento primordial e a forma de transmissão é porque está APENAS formalmente iniciado, elevado ou exaltado como moeda sem lastro.
Convivemos com pessoas que, apesar de terem recebido dezenas de cerimónias formais, desconhecem a transmissão primordial. Por causa disto, o formalismo e o ritualismo estão a suplantar o conteúdo transcendente nas Ordens iniciáticas, na maçonaria principalmente – como um todo – e nas Lojas que a compõem.
Talvez esteja aí a origem de tantas dificuldades e conflitos que temos vivenciado.
(Adaptado de texto escrito por José Maurício Guimarães)