Paradoxo da tolerância
A construção de uma sociedade fundada em valores que fortaleçam a tolerância mútua exige o estudo das formas de intolerância e das suas manifestações concretas. Hoje os nossos códigos de direito definem e condenam vários tipos de intolerância, por exemplo: racial, política, religiosa, etc. Trata-se, portanto, de uma questão social, económica e política.
Historicamente foram vários os significados dados à palavra tolerância, muito relacionada com a caridade, a igualdade e a afirmação da liberdade de crenças e de costumes do outro. O conceito que se afirma como o mais preponderante está relacionado com a nossa predisposição adquirida para acolher o diferente, destaca-se a especificidade da tolerância como virtude e como ideal da vida em comum.
Laudelino Freire, em seu Dicionário da Língua Portuguesa (1939), além do sentido de condescendência e indulgência, também a define como a “boa disposição dos que ouvem com paciência opiniões opostas às suas”.
No dicionário do Aurélio (1983) é definida como “tendência a admitir modos de pensar, de agir e de sentir que diferem dos de um indivíduo ou de grupos determinados, políticos ou religiosos”
Duas grandes obras são referências obrigatórias para o entendimento do sentido moderno de tolerância: a Carta acerca da tolerância de John Locke, em 1689 e o Tratado sobre a tolerância publicado por Voltaire em 1763.
O filósofo francês Voltaire refere que Tolerância: “É o apanágio da humanidade. Nós somos feitos de fraquezas e erros; a primeira lei da natureza é perdoarmo-nos reciprocamente as nossas loucuras” (p. 289). A tolerância de que fala o filósofo francês visa a supressão da violência, tendo sido instaurada como lei prévia ao contrato, razão pela qual se considera um “atributo da humanidade”. Não se trata apenas de uma estratégia para atingir a pacificação; trata-se de um elemento constitutivo da verdadeira natureza humana, a qual se entende agora como uma estrutura de valores universais e trans-históricos cujo cerne reside na liberdade. Negar a alguém o direito de pensar livremente e de agir em conformidade com os seus próprios critérios seria, a partir desta perspectiva, recusar-lhe a autenticidade de sua natureza e a integração no seio da humanidade a que, como pessoa livre, tem direito.
Apesar da origem do sentido de tolerância datar do século XVI, e ter sido discutida pelos grandes filósofos franceses Descartes, Rousseau e Voltaire, a identificação da tolerância com a noção de liberdade religiosa e de pensamento, passou a ser exigida, mas nem sempre respeitada, há bem pouco tempo, se considerarmos os absurdos acontecidos há pouco mais de 100 anos. É quando se tem notícia de fatos de intolerância religiosa punidos pela lei. Temos conhecimento de crimes bárbaros cometidos em nome da intolerância religiosa, que até nossos dias têm assolado os seguidores de doutrinas mais recentes.
O verdadeiro Cristão combate com firmeza atos ou crenças que possam conduzir a humanidade ao fanatismo religioso, com a única arma admissível: o Evangelho. Esta atitude possibilita sugerir os faltosos ou culpados a redirecionarem seu pensamento ou tendência. Os Profetas bíblicos eram homens temíveis! A coragem, ousadia, capacidade de luta e selo de verdade que lhes era impresso por Deus, fazia deles autênticos “guerreiros” desse mesmo Deus. O Profeta interessava-se, em primeiro lugar, pela conduta ética e moral, quer sua, quer dos outros. A força da mensagem das suas palavras estava no serviço que prestava para que a verdade, a justiça, a defesa do mais débil, … norteassem a conduta de uma comunidade política, religiosa e familiar. Estes Profetas conheciam a tolerância? Sim, eram tolerantes com quem reconhecia o erro e mudava de conduta. Todavia, eram intolerantes com a mentira, a mediocridade, a tirania. Por isso, em geral, eram perseguidos e mortos por quem tinha o poder e os considerava uns “desestabilizadores.
A nossa sociedade é carente dessa importante virtude, que possibilita a convivência fraterna entre as diversas tendências religiosas, ensinando que devemos respeitar e aceitar, com suficiente humildade as diferenças e desníveis inerentes ao padrão de individualização, nela, existente. Torna-se necessário compreender a virtude da tolerância como imperativo essencial ao pleno exercício da atividade religiosa, por ser esse o único caminho possível para suplantar os obstáculos e alcançar a plena solidariedade e o espírito fraterno.
Por sermos humanos, e sendo a natureza humana contraditória e imperfeita, por vezes podemos ser tomados de comportamentos egoístas ou sermos atraídos pela chama da fogueira das vaidades. Aquilo que nos outros é diferente de mim não é um defeito, pode muito bem ser uma virtude que posso e devo aprender. Não deixes que a vontade de ir à frente te seduza, nem temas ficar para trás…
Somos diferentes. Somos únicos. Isso é bom. Muito bom. A partir daqui podemos optar por aceitar a convivência como uma guerra ou como uma excelente forma de nos enriquecermos uns aos outros. A tolerância não é uma condescendência, mas sim a compreensão, aceitação e o reconhecimento do direito que têm aqueles que não pensam como nós, de se expressarem de forma diferente ou contrária às nossas crenças. Reconhecer o direito do nosso semelhante ser diferente não nos obriga ser igual a ele.
Mesmo o mais ferrenho defensor da liberdade de expressão pode se ver diante de circunstâncias que a questione. Por exemplo, é possível tolerar a liberdade de expressão quando esta ataca a religião e os bons costumes?
Concluindo entendo que a tolerância constitui uma dádiva preciosa e frágil, que deve ser cultivada para solidificar a noção de fraternidade entre nós. A tolerância não implica que me demita de identificar o erro. O facto de, objetivamente, o encontrarmos (v.g.) no que uma pessoa diz ou faz e o declararmos tal, não traduz uma atitude de intolerância. Por outro lado, o estar de acordo com alguém, nada tem de tolerância; significa, simplesmente, concordar. A tolerância é uma atitude cívica, mas como tal não pode escamotear a verdade. Trata-se, no fundo, de capacidade para aceitar a diferença, sem nunca escamotear ou fugir à verdade num diálogo racional.
A intolerância inviabiliza entendimentos e gera o caos por obscurecer princípios básicos e, consequentemente, dar lugar às tiranias e impiedades.
Quando a tolerância norteia atitudes, alcança-se um grau admirável de civilidade, com desdobramentos na organização social e política. Já a direção oposta a esse qualificado modo de agir leva ao crescimento das segregações, do ódio e das disputas que alimentam os focos de guerra, gerando xenofobias e massas de refugiados perseguidos. As consequências também são percebidas nos lares, nas empresas e nas repartições públicas, frequentemente contaminados pela desarmonia.
No horizonte amplo e fundamental do conceito de tolerância, é urgente exercê-la, especialmente, trilhando os caminhos de uma espiritualidade que pode, com mais eficácia e rapidez, qualificar cada pessoa para conviver com quem é diferente. Nesse sentido, oportunidade de ouro é conhecer o Evangelho da Tolerância, que reflete o jeito de uma pessoa:
Evangelho da tolerância
A vida de Jesus é o Evangelho da Tolerância, escrito para nortear os gestos quotidianos de todos e, assim, sustentar grandes transformações. A luz desse Evangelho balizou a essencialidade das práticas do cristianismo em ligação com as outras religiões. Foram encontros guiados por valores que superam a mesquinhez do egoísmo e permitem compreender que qualquer tipo de discriminação é inadmissível.
Nesse rico Evangelho da Tolerância, há um núcleo fundamental, nascido no coração de Jesus e eternamente desenhado por suas palavras: o Sermão da Montanha (capítulos cinco a sete) apresentado pelo evangelista Mateus. Trata-se de uma leitura a ser adotada diariamente, em jeito de meditação e que orienta as práticas do dia a dia. A preciosidade desse núcleo pode ser reconhecida a partir do comentário instigador e provocante de Mahatma Gandhi, ao dizer que se os cristãos levassem a sério o Sermão da Montanha, operariam uma radical revolução no mundo, nas relações e nos propósitos, desencadeando uma civilização fundamentada no amor e na paz.
“A tolerância é uma necessidade de todos os tempos e para todas as raças. Mas tolerância não significa aceitar o que se tolera.” Gandhi
O exercício diário de ler o Sermão da Montanha é simples e custa muito pouco, somente o tempo do silêncio restaurador, que também é fonte de sabedoria e saúde. Por isso, todos são convidados a praticá-lo, reservando um breve momento para, individualmente, em família, no trabalho ou mesmo na roda de amigos, ler um trecho, ainda que seja um só versículo. Assim é possível exercitar o coração e a vida no Evangelho da Tolerância.
Esta passagem forma um paradoxo, contrariando a ideia de muitos e mais uma vez mostrando que “… Deus não vê como o homem vê, o homem vê a aparência, mas Deus sonda o coração” (I Samuel 16.7). .
No Sermão da Montanha o evangelista Mateus está a apresentar Jesus Cristo como o novo Moisés, daí o discurso ser proferido numa montanha (talvez, apenas uma colina), pois Moisés tinha recebido os 10 Mandamentos no monte Sinai.
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